Eu Tenho Medo da China
Adriano Silva - Revista Época nº 533 de 04/08/2008
Adriano Silva
Quando a tocha olímpica chegou à china, foi recebida por centenas de chineses sentados em cadeiras geometricamente arrumadas sobre a pista do aeroporto. Todos usavam a mesma roupa clara, o mesmo chapéu branco, o mesmo tênis baixo. Todos tinham uma bandeirinha na mão e a agitavam com o mesmo sorriso no rosto. Aquela imagem correu mundo.
Naturalmente encomendada pelos dirigentes em todos os seus detalhes, tinha a evidente intenção de apresentar a todos nós um país organizado, emergente e pronto para receber os Jogos Olímpicos.
Talvez a foto tenha surtido o efeito desejado. Talvez tenha permitido a um bocado de gente que vive em lugares caóticos, sujos, perigosos - ou seja, em lugares reais do planeta Terra - admirar a China por sua suposta homogeneidade, por sua eficiência onírica, por seu orgulho ascendente.
A mim aquela foto não engana. Morei três anos na Ásia e sei o preço que aquela suposta harmonia coletiva cobra de cada um. A felicidade idealizada de todos subsiste à custa de uma pá de sacrifícios impostos às pessoas em particular. E eu vivi no país mais democrático da Ásia, o Japão. A China, que promove o controle da vida privada e a submissão da sociedade civil ao governo, leva o espírito de Confúcio (além dos ditames de Mao) ao paroxismo. A ponto de transformar a chegada das Olimpíadas, que poderiam ser um evento de alegria autêntica, de gente sorrindo de modo genuíno, numa maquete com manequins, constrangedora em sua artificialidade.
A felicidade idealizada de todos subsiste à custa
de uma pá de sacrifícios impostos às pessoas.
As Olimpíadas são o evento mais querido do planeta. Como todo país-sede, a China fará um uso profissional dele para vender sua marca mundo afora. A brecha nessa avalanche publicitária é a própria escolha do que mostrar - o que revela muito da alma do país. Assim como em 1996 ficou claro que Atlanta, e boa parte dos Estados Unidos, compõe o lugar mais cafona e sem graça do Sistema Solar e, quatro anos antes, Barcelona e o estilo de vida espanhol apareceram como idílio e objeto do desejo para todo o mundo, é possível que neste ano a própria maquiagem chinesa revele a imagem que a China tem de si própria, a noção que ela tem do que o mundo deveria ser, os valores que cultiva em seu íntimo.
Não é à toa que a internet e a China têm tido tantas rusgas. A cultura digital, que vai definir este século e que representa talvez a maior revolução cultural e econômica já produzida pela humanidade, desafia em tudo a crescente hegemonia chinesa. Enquanto a internet é um ambiente aberto e multilateral, onde o poder está pulverizado nos indivíduos e o controle dos usuários funciona muito mais que o policiamento externo, onde a substituição das regras existentes por novos paradigmas é algo a ser comemorado, a China resolve tudo de um jeito binário: uns mandam, muitos obedecem calados.
Esses atributos, e o modo marcial como a China os hasteia todo dia junto com a bandeira do capitalismo de Estado ancorado na repressão política, me assustam muito. Como já se ouve dizer por aí: parece inacreditável, mas a emergência da China como superpotência econômica, se trouxer em seu bojo um projeto de supremacia cultural, tem tudo para nos fazer sentir muita saudade do tempo em que as cartas eram dadas pelos americanos.
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