Jeito brasileiro de ser espírita
Antropóloga estuda história e linhas de força que  lutam pela hegemonia da religião no Brasil
  Jornal do Brasil - Paula  Barcellos - 28/02/2004
  
  
 
Apesar de contar com 6 milhões de  espíritas declarados e outros milhões de simpatizantes, a história e a prática  dessa religião ainda não tinham transposto os muros acadêmicos. Para suprir essa  lacuna, a antropóloga Sandra Jacqueline Stoll escreveu Espiritismo à  brasileira (Edusp, 296 páginas, R$ 35), originalmente uma tese de doutorado  em Antropologia Cultural na USP. Confrontando dois personagens fundamentais,  Chico Xavier e Luiz Antônio Gasparetto, Sandra identificou novas linhas de força  da religião espírita, desde o início dividida entre uma corrente cientificista,  predominante na Europa, e outra que privilegia o aspecto moral, hegemônica no  Brasil. Nesta entrevista, ela explica as novas divisões do espiritismo: de um  lado, a ligação com o catolicismo, expressa na aceitação voluntária, por Chico  Xavier, dos votos monásticos de pobreza e castidade. De outro, a Nova Era e a  auto-ajuda de Gasparetto, que prega a realização pessoal e o sucesso.
  
  
  
 - O que a levou a estudar o  espiritismo?
  
 - Eu tinha curiosidade de rever a  interpretação da inserção do espiritismo na cultura religiosa brasileira. Quando  se analisam certas tendências do campo religioso, os grupos mencionados são os  católicos, os carismáticos, os neopentecostais e os grupos afro-brasileiros.  Suprir essa lacuna foi uma das motivações dessa pesquisa. Mas havia também a  figura extraordinária de Chico Xavier, que, apesar da unanimidade conquistada  dentro e fora do meio espírita, não tinha sido ainda objeto de pesquisa  antropológica. O mesmo ocorre com outro médium de destaque, Luiz Antônio  Gasparetto. Suas pinturas mediúnicas chamaram tanto a atenção que ele chegou a  ser levado para a Inglaterra, para se apresentar na BBC.
  
  
  
 - No livro, você compara a doutrina  espírita francesa, fundada por Allan Kardec, com a brasileira. Elas acabaram se  tornando religiões diferentes? Ou as diferenças são, basicamente, resultantes de  comportamentos culturais distintos?
  
 - A doutrina de Allan Kardec teve uma  larga difusão na França, assim como no Brasil, no século 19. Nestes dois países,  porém, as características assumidas pela doutrina não foram as mesmas. Na  França, a produção das obras de Allan Kardec tinha como tema central a teoria da  evolução. Essa era a tônica dos debates científicos e religiosos na Europa na  época. Já no Brasil, apenas em círculos sociais restritos esse debate encontrou  ressonância. Em contrapartida, o aspecto moral da doutrina espírita foi  rapidamente assimilado, por seu estreito comprometimento com o ideário cristão.  O que demonstro no livro é que esse ideário foi aqui reinterpretado, criando-se  um ''estilo católico de ser espírita''. O médium Chico Xavier é o paradigma  dessa construção. Sua imagem pública foi construída com base na noção católica  de santidade. Isso se expressa no estilo de vida por ele adotado, marcado pela  incorporação gradativa dos votos monásticos católicos: obediência, castidade,  renúncia aos bens materiais. Traduzidas como ''sacrifício de si'', essas  práticas, juntamente à caridade, também assimilada do universo católico,  conferem ao espiritismo uma marca arraigadamente católica, cultura religiosa  dominante no país. Não se trata, porém, de uma outra religião, já que os  preceitos doutrinários do espiritismo no Brasil são os mesmos lançados na  França.
  
  
  
 - Isso teria acontecido apenas no  Brasil?
  
 - Nos países em que a religião  católica é dominante, a apropriação de elementos de sua estrutura, de sua  prática ritual e ideário faz parte das estratégias de inserção de doutrinas  estrangeiras. Veja como outras religiões rapidamente se apropriam de símbolos do  catolicismo para facilitar sua inserção nas camadas populares: as figuras dos  bispos, pastores, templos, água, batismo etc. são exemplares nesse sentido. O  Brasil não foge à regra. Mas é preciso também salientar que mudanças nas  relações de poder no campo religioso podem alterar esse processo. Como demonstro  no livro, existem hoje outras correntes bastante influentes no campo religioso.  O próprio catolicismo tenta se adaptar a essas mudanças, introduzindo, de um  lado, práticas rituais que o aproximam do pentecostalismo e, de outro,  estimulando as peregrinações religiosas e o culto aos santos ao estilo Nova Era.  Isso também pode ser observado no universo espírita: a construção de novas  sínteses em que o catolicismo não ocupa lugar central. Provavelmente, como vêm  demonstrando várias pesquisas recentes, a tendência reflete o solapamento da  posição hegemônica que o catolicismo ocupava no Brasil.
  
  
  
 - É inegável a importância de Chico  Xavier no espiritismo brasileiro. Pode-se dizer que sua produção literária  mediúnica legitimou a idéia de imortalidade da alma, uma das principais teses  espíritas, a ponto de ser aceita por praticantes de outras religiões?
  
 - A contribuição fundamental da  literatura produzida por Chico Xavier foi certamente a popularização da doutrina  espírita. Suas obras, acompanhadas cronologicamente, permitem perceber que os  temas fundamentais do espiritismo - a idéia da imortalidade da consciência, da  evolução, do carma etc. - são introduzidos de forma gradativa, articulando-se,  especialmente nos romances, por meio do enredo de histórias de vida. Realizado  por mais de 70 anos, esse projeto certamente contribuiu para a disseminação da  idéia da imortalidade da alma, inclusive entre os que se dizem católicos, como  sinalizam várias pesquisas acadêmicas e jornalísticas.
  
  
  
 - Quais seriam as principais  tendências do espiritismo brasileiro hoje?
  
 - O espiritismo de ''viés católico'',  consolidado em torno da imagem pública de Chico Xavier, ainda é hegemônico no  Brasil, mas no interior deste vêm sendo gestadas novas tendências. Hoje temos  duas correntes dominantes: uma, a exemplo da orientação de Kardec, vem buscando  a inovação da doutrina por meio da atualização de seus conceitos científicos; a  outra busca no campo religioso sua atualização, incorporando idéias e práticas  de sistemas filosóficos/doutrinários diversos, precariamente reunidos em torno  do rótulo de Nova Era e com grande ênfase na auto-ajuda. A Nova Era e as novas  idéias científicas relativas às origens e evolução do universo tornaram-se as  suas principais fontes contemporâneas de inspiração.
  
  
  
 - Os livros de auto-ajuda têm  influenciado o espiritismo?
  
 - Essa é uma tendência que não se  verifica apenas no Brasil. Hoje em inúmeras livrarias da Índia, do Nepal, da  Inglaterra, de Portugal, do Chile e da Argentina, você encontra amplas seções de  livros destinados à auto-ajuda. O espiritismo no Brasil acompanha essa tendência  e, diga-se de passagem, a Igreja Católica também. Chico Xavier foi o primeiro  best-seller do campo espírita. Hoje os livros de outros médiuns, em  especial de Zíbia Gasparetto, tomaram-lhe a dianteira. Seus livros há anos  constam entre os mais vendidos. Esse sucesso, em larga medida, explica-se por  uma mudança do modelo convencional da literatura espírita para o filão da  auto-ajuda.
  
  
  
 - O que muda?
  
 - Os temas principais são os mesmos -  carma, evolução, intervenção dos espíritos etc. -, porém o alvo não é a vida  futura, mas o aqui e agora. Usando uma linguagem mais coloquial, moderna e  situações do cotidiano, essa literatura encontra ressonância especialmente entre  os segmentos de classe média, ultrapassando os limites do espiritismo. Nesse  sentido, esta literatura também contribui para a disseminação de temas  fundamentais da doutrina espírita. A diferença é que nessa literatura o tema do  livre-arbítrio ganha centralidade, enfatizado como instrumento de ''realização  pessoal'', o que permite relativizar, por exemplo, a idéia do carma como destino  inexorável.
  
  
  
 - Um autor como Luiz Antonio  Gasparetto une rituais mediúnicos às temáticas da Nova Era e às práticas de  auto-ajuda. Como a doutrina espírita absorve tudo isso?
  
 - Dizem os espíritas que Luiz Antônio  Gasparetto já não é mais espírita. Ele mesmo recusa essa denominação. O endosso  de certas idéias e práticas da Nova Era e especialmente da auto-ajuda, segundo  eles, teria produzido o seu afastamento da tradição doutrinária. Entretanto,  outros grupos fizeram o mesmo e ainda são considerados espíritas. O pomo da  discórdia na verdade é uma questão de ordem ética: trata-se da discordância dos  espíritas com relação ao uso da mediunidade para fins privados, em especial para  o enriquecimento pessoal. Aí se evidencia o modelo de virtudes católico  disseminado no espiritismo por Chico Xavier, que fez da prática da mediunidade  um exercício do voto de pobreza. Gasparetto, ao contrário, investe por  intermédio da auto-ajuda na ética do sucesso, da prosperidade. Atua em favor do  próximo, porém não por meio da caridade, mas estimulando as pessoas a buscarem  por si a felicidade, o prazer, a realização pessoal. Ele tem tido enorme sucesso  com esse trabalho. Sustento, apesar disso, que Gasparetto continua no campo  espírita. É a partir dessa matriz que ele reinterpreta os conceitos e práticas  de outras tradições.
  
  
  
 - Projetos como os de Gasparetto  podem conduzir à criação de um novo espiritismo?
  
 - A princípio é o que ele pretendia.  Mas, hoje, afirma que não é espírita. Cada sistema religioso lida com a  divergência e a dissidência de modos diversos. Os espíritas se debateram no  Brasil durante décadas entre duas tendências, aqueles mais afinados com o  discurso científico da doutrina, e os demais sintonizados com seus valores  morais. Com Chico Xavier e seus seguidores tornou-se hegemônica a segunda  corrente. Hoje existem novas tendências, dentro do campo espírita, disputando  espaço. Não se sabe ainda qual o desfecho dessa disputa que apenas se inicia.  Mas ela, forçosamente, impõe transformações.
  
  
  
 - Muitas pessoas hoje se assumem  como espiritualistas. Como você definiria esse conceito?
  
 - Como outros conceitos, por exemplo  de Nova Era ou ''neo-esoterismo'', estes são rótulos que demarcam um campo de  trocas, disputas e diálogos e não um modo de identidade. Quem se diz  espiritualista pode num dado momento estar realizando meditação de estilo zen,  freqüentar sessões de ioga, massagem tibetana, consumir incensos, colecionar  medalhas de santos católicos. Meses depois, pode ter abandonado um ou mais  destes itens e estar envolvido numa nova síntese. Esse exercício da  espiritualidade pouco afeito a fidelidades institucionais é o que caracteriza a  religiosidade contemporânea. Talvez seja um dos principais desafios das  instituições religiosas.
  
  
  
  
  
  
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