Quarta-feira 9, 20 minutos antes de  1 da tarde. O banqueiro Daniel Dantas estava preso há 24 horas, acusado de  diversos crimes, entre eles o de tentativa de corromper um delegado federal. Na  rádio CBN, uma das tantas emissoras da família Marinho, a onipresente Miriam  Leitão continua perplexa. Diz não entender o motivo da prisão, pois as acusações  tratam de "coisas do passado" (ao que um gaiato jornalista, ao saber do  argumento, comentou: "Ainda bem que a Polícia Federal não prende as pessoas por  assuntos futuros, crimes que ainda nem foram cometidos"). Ao fim do comentário,  conforme registra Bob Fernandes no site Terra Magazine, Miriam deixa o estúdio e  o colega Carlos Alberto Sardenberg, sem perceber que o microfone continua  ligado, emenda: "Ela tá esquisita, não?"
 
 
 
Em sua coluna do mesmo dia em O Globo,  Miriam Leitão já havia oferecido aos leitores sua visão dos acontecimentos,  teses que viriam a ser encampadas pelo próprio jornal nos dias posteriores. Em  resumo, a colunista questionava o fato de o banqueiro ser preso enquanto  envolvidos em outros escândalos, como os do chamado mensalão, estavam soltos (ao  que o mesmo gaiato jornalista interporia: se nem todos que deveriam apodrecer no  xilindró estão na cadeia, então seria o caso de abrir a porta das celas, por  questão de isonomia). Segundo a jornalista, Dantas não cometeu crimes (apesar  das condenações em cortes internacionais), mas se meteu "em diversas  confusões".
 
 
 
O que se viu no resto da mídia não foi  muito diferente. O necessário, mas superdimensionado debate sobre os possíveis  excessos cometidos por agentes federais durante as prisões contrastou com a  falta de questionamentos a respeito do prejulgamento do presidente do Supremo  Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, que antes de conceder o habeas corpus ao  banqueiro criticou, em cadeia nacional de televisão, a ação da PF. As inúmeras  referências às ligações de Dantas com o escândalo que se convencionou chamar de  mensalão faziam sombra às parcas memórias de que o poder do dono do Opportunity  criou raízes no processo de privatização dos anos 90.
 
 
 
A cobertura da Operação Satiagraha não é  reflexo somente do apego aos fatos expostos pelo Ministério Público e a polícia  na terça-feira 8. Ela reflete os temores da mídia diante de uma investigação  que, se levada a cabo, promete expor pela primeira vez a relação incestuosa de  jornalistas, empresas de comunicação e determinados poderes, privados e  públicos. 
 
 
 
O despacho do juiz Fausto de Sanctis que  autorizou as prisões de Dantas, Nahas e mais duas dezenas de acusados não deixa  dúvidas. "Por meio de representações policiais, noticia-se que as atividades dos  envolvidos voltar-se-iam ao cometimento de delitos de quadrilha ou bando contra  o sistema financeiro nacional, contra o mercado de capitais, de tráfico de  influência e eventualmente lavagem de valores, com o auxílio de alguns  representantes dos meios de comunicação para veicularem informações com o  objetivo de distorcer a realidade e franquear resultados favoráveis a seus  interesses", anexou ao despacho o juiz da 6ª Vara Federal, especializada em  crimes financeiros. Não é a única referência a jornalistas e veículos de  comunicação no texto. 
 
 
 
De Sanctis sabe do que fala. Nas duas  semanas anteriores à Operação Satiagraha, virou alvo de artigos em sites  especializados em Direito e de reportagens de tevê. O juiz foi acusado de  descumprir determinações do ministro do Supremo, Celso de Mello. Ao mesmo tempo,  em sucessivas ocasiões, Gilmar Mendes ganhava holofotes ao criticar duramente a  Polícia Federal. Na mais contundente declaração, em 2 de julho, Mendes afirmou  que o Brasil havia se tornado um Estado policial e acusou certos agentes da PF  de se comportarem como "gângsteres". Coincidências? 
 
 
 
Coincidências ou não, em quase uma  década da mais exaustiva e intricada disputa societária do capitalismo  brasileiro, a mídia sempre foi um importante campo de batalha. O Opportunity  percebeu cedo a necessidade de vencer a luta por espaço e tentar manobrar o  noticiário a seu favor. Quando ainda despontava no mundo das finanças, Dantas  chegou a merecer uma cobertura crítica. Adversários e concorrentes o acusavam de  operações irregulares no mercado acionário. 
 
 
 
Com o tempo - e o auxílio de um batalhão  de assessores, publicitários e lobistas de diversos calibres regiamente pagos -,  o banqueiro mudou de status. Genial, ousado, aluno brilhante de Mário Henrique  Simonsen. No máximo, controverso. De uns tempos para cá, outra inflexão: há quem  o trate agora como um empresário perseguido por forças contra as quais não  consegue lutar. Quanto ao hábito de grampear desafetos e concorrentes? Quanto ao  fato de que não exista um único negócio no qual não tenha brigado com os demais  sócios? Silêncio. 
 
 
 
Prevalece a tese do oprimido. Como na  primeira edição de IstoÉ deste ano. O banqueiro, eleito um dos "cem mais  influentes do País", é assim descrito: "Sem armas para enfrentar inimigos tão  fortes, Dantas se recolheu, mas não perdeu o faro nem a capacidade de ganhar  dinheiro". 
 
 
 
Ao capítulo da reinvenção da história  recomenda-se a leitura da série "O Caso Veja", no blog do jornalista Luis Nassif  (www.projetobr.com.br).  Há vários textos dedicados à aproximação de Dantas com jornalista da revista de  maior circulação do País. Um deles, Diogo Mainardi, o varão que gosta de acusar  outros de emitir opiniões em troca de dinheiro, nos próximos dias vai se  apresentar como o herói que denunciou DD e Nahas. Uma leitura atenta de suas  colunas, como fez Nassif, mostra, porém, uma coincidência com interesses  específicos e imediatos do dono do Opportunity.  
 
 
 
Na última década, CartaCapital é quase  exceção no cenário midiático. Desde o processo da privatização do Sistema  Telebrás, em 1998, do qual DD emergiu como um dos vencedores, a revista cuida de  acompanhar seus atos e implicações. São interesses puramente jornalísticos,  guiados pelo desejo de decifrar a ascensão do jovem financista, que se aproximou  do mundo da política pelas mãos de Antonio Carlos Magalhães, aninhou-se no  tucanato e de lá só saiu para ingressar nas hostes do PT que fabricaram a  aliança com o publicitário Marcos Valério. 
 
 
 
Tem sido uma cobertura intensa e  aplicada, que possibilitou aos leitores montar um painel da história republicana  recente do Brasil, da mistura entre os interesses públicos e privados, do modus  operandi do poder real, aquele que ultrapassa governos e tendências. Do trabalho  jornalístico emergiu não um gênio, mas um obsessivo. Não um controverso, mas  alguém disposto a utilizar de todos os métodos para alcançar seus objetivos. Um  homem condenado na mais alta Corte britânica por roubar e falsear documentos. Um  executivo cujos métodos foram descritos por um juiz de Nova York como atos "de  bandidos". Julgamentos e condenações, aliás, de pequena repercussão na mídia  brasileira, apesar de se tratar de um banqueiro que administrou 6 bilhões de  dólares, em 2001, e que chegou a controlar empresas de telefonia e o Metrô do  Rio. E assim foi retratado.
 
 
 
É uma longa saga, que remonta aos  primórdios da privatização da telefonia. Em 1998, CartaCapital publicou parte  dos diálogos que viriam a ser chamados de "Grampos do BNDES". A farta reprodução  de trechos de conversas telefônicas espairece qualquer dúvida da interferência a  favor de Dantas. "Temos que fazer os italianos na marra, que estão com o  Opportunity. Combina uma reunião para fechar o esquema", afirmou Luiz Carlos  Mendonça de Barros, então ministro das Comunicações, ao economista André Lara  Resende, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.  
 
 
 
Mendonção e Resende eram os principais  executores da privatização da telefonia no País. A essa altura, o próprio FHC, a  "bomba atômica" a ser acionada em caso de necessidade, segundo Mendonção, e  sabedor do que se passava nos bastidores, comenta que a mídia passara dos  limites, de tão favorável que era a cobertura do processo de privatização.  
 
 
 
De lá para cá, em contraste ao  desinteresse geral, a revista noticiou o desenrolar da disputa pelo controle das  telefônicas privadas que emergiram do leilão da Telebrás, as investigações sobre  as contas irregulares de brasileiros no Opportunity Fund, sediado nas Ilhas  Cayman (alvo da atual operação da PF), as brigas com o ex-sócio Luís Roberto  Demarco, as idas e vindas com a Telecom Italia e o Citibank, a opção pelo  submundo dos grampos e da espionagem e, por fim, sua aproximação de figuras  importantes do PT e seu papel crucial no escândalo do mensalão. Não fosse a  cobertura de CartaCapital e Dantas nunca teria sido convidado a depor na CPI dos  Correios. E sem a sua citação no relatório final da comissão, a Satiagraha não  teria sido possível. 
 
 
 
Há quem sempre estivesse - e esteja -  disposto a acusar a revista de perseguição gratuita. Há quem tenha deixado de  anunciar em CartaCapital brandindo esses argumentos (ou desculpas). Mas os  fatos, ao longo do tempo, confirmam o acerto da cobertura.  
 
 
 
Agora mesmo, no calor das prisões,  chegam informações de que Dantas, em sua estratégia para despistar a polícia,  lançou falsas acusações contra CartaCapital. Assim que souberam, por meio de uma  reportagem da jornalista Andrea Michael, da Folha de S.Paulo, da existência de  uma nova investigação, DD e alguns dos envolvidos no caso passaram a se referir  ao jornalista Mino Carta em conversas telefônicas. Diziam que Mino estava no  "bolso deles". Só há duas explicações: ou Dantas está tão acostumado a oferecer  benesses a jornalistas que chegaria ao ponto de dar dinheiro a quem expõe suas  manobras ou é o primeiro empresário que prefere a verdade às loas distribuídas  sem critério a qualquer executivo bem-sucedido. Assim os desonestos vão  reclamar. 
 
 
 
Dantas, sabe-se, é onipresente em vários  setores da sociedade. Na política, por exemplo, serve-se do DEM, do PSDB e do  PT. Na advocacia, é praticamente impossível encontrar um único grande escritório  do País que por ele não tenha sido contratado. Houve época em que à Comissão de  Valores Mobiliários (CVM) não chegavam processos contra o Opportunity porque os  diretores, oriundos da advocacia privada, eram obrigados a se julgar impedidos  por já terem defendido os interesses do banco. Na mídia, a influência não chega  a ser tão extensa, mas o que se prenuncia nas entrelinhas da Satiagraha é a  revelação de um esquema que atinge publicações diversas e, em tese,  concorrentes. 
 
 
 
O desenrolar das apurações dependerá,  sobretudo, da queda-de-braço entre os advogados de DD, o Ministério Público e a  PF. A Operação Satiagraha já se inscreve nos enredos policialescos mais  conturbados da história dos crimes financeiros. Em menos de 24 horas, Dantas foi  posto em liberdade por um habeas corpus concedido pelo presidente do STF, Gilmar  Mendes, e voltou para a cadeia por ordem do juiz De Sanctis. Por quanto tempo  vai durar o jogo de gato e rato?
 
 
 
 
 
* * * * * * *  *
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  
 Daniel  Dantas
 
 
 
 
 
 
 
  
 Miriam  Leitão
 
 
 
 
 
 
 
  
 Gilmar  Mendes
 
 
 
 
 
 
 
  
 Fausto de  Sanctis
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  
 Fernando Henrique Cardoso  (FHC)