A               Perpetuação da Pobreza
Carta Capital nº 692               de 11/04/2012 - Drauzio Varellahttp://www.cartacapital.com.br/saude/a-perpetuacao-da-pobreza/
"A             falta de acesso ao planejamento familiar é a mais odiosa de             todas as violências que a             sociedade brasileira comete contra a mulher pobre".
As             periferias das cidades brasileiras parecem umas com as             outras: casas sem reboco, grades de segurança, fios             elétricos emaranhados, vira-latas e criançada na rua. Há 13             anos faço programas de saúde para a televisão. Procuro             gravá-los nos bairros mais distantes, por uma razão óbvia:             lá vivem os que mais precisam de informações médicas.
Esta semana, como parte de uma             série sobre primeiros socorros, gravamos a história de um             menino de 2 anos que abriu sozinho a porta do forno, subiu             nela e puxou do fogo o cabo de uma panela cheia de água             fervente. A queimadura foi grave, passou duas semanas             internado no hospital do Tatuapé, em São Paulo. Situada na             periferia de Itaquera, a casa ocupava a parte superior de             uma construção de dois andares. Subi por uma escada metálica             inclinada e com degraus tão estreitos, que precisei fazê-lo             com os pés virados de lado.
A porta de entrada dava numa             cozinha com o fogão, a geladeira, as prateleiras com as             panelas e uma pequena mesa. Um batente sem porta separava-a             do único quarto, em que havia dois beliches, um guarda-roupa             e uma divisória de compensado que não chegava até o teto,             atrás da qual ficava a cama em que dormiam o pai e a mãe.
Nesse espaço exíguo viviam dez             pessoas: o casal, seis filhos e dois netos. Os filhos             formavam uma escadinha de 2 a 17 anos; os netos eram filhos             das duas mais velhas, que engravidaram solteiras. O único             salário vinha do pai, pedreiro. Por falta de pagamento, a             luz tinha sido cortada há dois meses, os 300 reais da dívida             a família não sabia de onde tirar.
No fim da gravação perguntei à             mãe, uma mulher de 38 anos que pareciam 60, por que tantas             crianças. Disse que o marido não gostava de camisinha, e que             a existência dos netos não fora planejada, porque “essas             meninas de hoje não têm juízo”.
Na periferia do Recife, de             Manaus, de Cuiabá ou Porto Alegre a realidade é a mesma: a             menina engravida em idade de brincar com boneca, para de             estudar para cuidar do bebê que já nasce com o futuro             comprometido pelo despreparo da mãe, pelas dificuldades             financeiras dos avós que o acolherão e pelos recursos que             terá de dividir com os irmãos.
Na penitenciária feminina,             quando encontro uma presa de 25 anos sem filhos, tenho             certeza de que é infértil ou gay. Não são raras as que             chegam aos 30 anos com seis ou sete. Não fosse o tráfico,             que alternativa teriam para sustentar as crianças?
Já escrevi mais de uma vez que             a falta de acesso aos métodos de controle da fertilidade é             uma das raízes da violência urbana, enfermidade que atinge             todas as classes, mas que se torna epidêmica quando se             dissemina entre os mais desfavorecidos. Essa afirmação causa             desagrado profundo em alguns sociólogos e demógrafos, que a             acusam de forma leviana por não se basear em estudos             científicos. Afirmam que a taxa de natalidade brasileira já             está abaixo dos níveis de reposição populacional.
É verdade, mas não é preciso             pós-graduação em Harvard para saber que as médias podem ser             enganosas. Enquanto uma mulher com nível universitário tem             em média 1,1 filho, a analfabeta tem mais de 4. Enquanto 11%             dos bebês nascem nas classes A e B, quase 50% vêm da classe             E, com renda per capita mensal inferior a 75 reais.
De minha parte, acho que faz             muita falta aos teóricos o contato com a realidade. Há             necessidade de inquéritos epidemiológicos para demonstrar             que os cinco filhos que uma mulher de 25 anos teve com             vários companheiros pobres como ela, correm mais risco de             envolvimento com os bandidos da vizinhança do que o filho             único de pais que cursaram a universidade? Convido-os a sair             do ar condicionado para visitar um bairro periférico de             qualquer capital num dia de semana, para ver quantos             adolescentes sem ocupação perambulam pelas ruas. Que futuro             terão?
A falta de acesso ao             planejamento familiar é a mais odiosa de todas as violências             que a sociedade brasileira comete contra a mulher pobre.
 
 
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