A Cultura Muda o Cérebro?
Roberto Lent - Boletim Ciência Hoje nº 152 de 01/08/2008
http://cienciahoje.uol.com.br/124713
Roberto Lent - Boletim Ciência Hoje nº 152 de 01/08/2008
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Roberto Lent
Para julgar a si próprios, ateus e cristãos usam diferentes circuitos cerebrais, mostram pesquisas.
Que letra você vê acima?
Você acha que o ambiente cultural e social em que foi criado desde a infância determina o funcionamento do seu cérebro? Talvez você responda a essa pergunta argumentando que as funções mais complexas - cognitivas ou afetivas, por exemplo - possam ser de fato influenciadas pela cultura e pela sociedade, mas não as tarefas mais simples.
Então dê uma olhada na figura acima: que letra você percebe? Um "A" ou vários "Ms" pequeninos? Observando com atenção, verá os dois. No entanto, medindo o tempo que você levaria para apertar um botão para A ou um botão para M (tempo de reação), pode-se comprovar que você percebe os "Ms" antes do "A" - seu tempo de reação terá sido menor para os primeiros.
Isso acontece com a maioria das pessoas ocidentais (brasileiros, americanos, europeus). Mas é diferente para os orientais (japoneses, chineses, coreanos). A maioria deles percebe o "A" antes dos "Ms"! Provavelmente, o mesmo ocorre na percepção do quadro do pintor catalão Salvador Dalí (1904-1989), que está abaixo: você perceberá primeiro as figuras femininas vestidas à antiga, e só depois o busto de Voltaire formado por elas. O inverso ocorrerá com os orientais.
Que cena está sendo observada pela mulher no quadro de Dalí?
Os psicólogos sabem há muito que a estratégia de percepção dos orientais é mais holística, isto é, mais global, enquanto a dos ocidentais é mais analítica, detalhista. Sabem também que nós, ocidentais, focalizamos a atenção mais fortemente em nós próprios do que nos outros. Nossa cultura é individualista, centrada na primeira pessoa. O contrário ocorre na cultura oriental, que enfatiza mais fortemente os vínculos sociais e familiares.
Só que, no teste acima, o tempo de reação se inverte (menor para a percepção holística) se, antes de apertar o botão, você for sensibilizado pela leitura de um texto escrito na primeira pessoa do plural (nós). O pronome coletivo modula a percepção, modificando a estratégia detalhista para uma estratégia holística! E o oposto acontece com os orientais, segundo trabalho feito em 1999 pela psicóloga Wendi Gardner e seu grupo, na Universidade Northewestern, Estados Unidos.
O funcionamento do cérebro modificado pela religião
Uma análise crítica do trabalho dos psicólogos sociais poderia argumentar que algo de inato pode distinguir o cérebro dos orientais em relação ao dos ocidentais. Afinal, do mesmo modo que os olhos são puxados nos japoneses e chineses, mas não nos brasileiros e americanos, quem sabe o funcionamento do cérebro possa ser também diferente - constitutivamente e não por influência cultural - nesses dois grupos humanos.
Essa crítica foi recentemente abalada pelo trabalho de um grupo de pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade de Pequim, na China, sob a liderança de Shihui Han. Eles partiram da diferença bem estabelecida entre a função de duas regiões adjacentes do córtex pré-frontal (aquele que fica bem sob a fronte das pessoas).
A região ventromedial, por um lado, é consistentemente ativada quando pensamos em nós próprios: se somos bonitos ou feios, se estamos felizes ou tristes, se nosso desempenho de ontem no trabalho foi bom ou ruim. É o local do cérebro onde se estabelece a autoconsciência dos indivíduos.
Já a região dorsomedial é ativada quando tentamos nos colocar no lugar de uma outra pessoa, para interpretar seu pensamento ou suas emoções. Você a utiliza quando imagina se o seu interlocutor está alegre ou triste, com base na sua expressão facial ou no seu comportamento. Essa função cognitiva é conhecida como atribuição mental, ou "teoria da mente".
O julgamento no cérebro de ateus e cristãos
Muito bem. Que fizeram os pesquisadores chineses? Selecionaram um grupo de pessoas sem religião e outro composto por cristãos, e registraram imagens de ressonância magnética funcional durante tarefas mentais em que os sujeitos tinham que julgar a si próprios ou a outras pessoas.
Ao julgar-se a si próprios, os cristãos empregam regiões cerebrais diferentes das pessoas não religiosas.
Reproduzido de Han, S e Northoff, G. (2008) Nature Reviews. Neuroscience, vol. 9:646-654.
Após visualizar ou ouvir adjetivos como "leal", "desleal", "corajoso", "infantil", cada um deles era solicitado a escolher aqueles que mais apropriadamente se adequassem a si próprio ou, alternativamente, a alguma pessoa pública conhecida. As imagens, processadas por computador, revelam quais regiões cerebrais estavam mais ativas durante o desempenho da tarefa mental solicitada, e podem assim indicar quais regiões são empregadas no autojulgamento e no julgamento de terceiros.
O experimento indicou que os chineses cristãos ativam o córtex pré-frontal dorsomedial quando atribuem adjetivos a si próprios, enquanto os indivíduos não religiosos ativam a região ventromedial. Levando em conta a função dessas duas regiões, os pesquisadores concluíram que os cristãos se julgam "pondo-se no lugar de Deus", já que sua religião lhes ensina que a moral se estrutura "na perspectiva de Deus".
Essa operação psicológica é típica da atribuição mental ou "teoria da mente": é preciso imaginar-se na posição de Deus para julgar-se a si próprio. Já os não religiosos se julgam tomando como referência a sua própria história de vida e suas características próprias, sem se colocar na posição de um observador externo, tarefa típica do córtex pré-frontal ventromedial.
Tudo indica, portanto, que a cultura de fato modula o funcionamento do cérebro. A organização cerebral é a mesma em todos os indivíduos, sejam eles chineses, brasileiros, cristãos ou budistas. O que muda é o modo de usar...
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Os homens íntegros e honestos, que agem com respeito e compreensão a idéias e pensamentos diferentes, onde não pregam a intolerância e o ódio, podem comprovar como é possível a convivência harmoniosa e pacífica entre as mais diversas religiões e escolas filosóficas. Um abraço. Drauzio Milagres.
ResponderExcluirInteressante! Eu de fato já desconfiava que isso poderia acontecer... pois sempre que transformamos nossos pensamentos em palavras, também há uma resposta fisiológica nossa, por parte do nosso corpo, ou seja, funciona como um bom índice de aprendizagem quando estamos estudando outro idioma, por exemplo, e como forma de apurar concretamente se de fatos estamos assimilando as novas informações com eficiência ou não, se estamos aprendendo realmente...
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