A Elite e os Traficantes
Nelito Fernandes, Rafael Pereira e Martha Mendonça - Revista Época nº 493 de 29/10/2007
Uma pesquisa afirma que são os jovens ricos os que mais usam drogas.
Eles são culpados pela violência do tráfico?
Madrugada no morro. Um grupo de policiais ataca de surpresa uma boca de fumo e mata dois traficantes. O Capitão Nascimento pega um dos consumidores pelos cabelos e o obriga a pôr o rosto nos buracos de bala no peito do bandido morto. O rapaz, apavorado, diz que é estudante, na tentativa de se defender.
- Quem matou ele? - pergunta o capitão, aos berros.
- Não sei - responde o rapaz.
- Não sabe? Quem matou ele?
- Vocês, foram vocês!
- Nós? Quem matou ele foi você! A gente vem aqui limpar a m* que você faz!
Não é à toa que essa cena, do filme Tropa de Elite, é uma das que mais chocam os espectadores. Ela toca numa questão crucial do tráfico: A taxa de responsabilidade dos consumidores. Uma pesquisa divulgada na semana passada pela Fundação Getúlio Vargas aponta o dedo para uma parcela da elite. Maconha e cocaína no Brasil são bens de luxo, para a população com maior poder aquisitivo. De acordo com o levantamento, o consumidor-padrão de drogas no Brasil é homem, tem entre 20 e 29 anos, é da classe média alta e mora com os pais. Gasta, em média, R$ 45 por mês com drogas. "Estatisticamente, a visão de Tropa de Elite é correta: Quem financia o tráfico é a classe média", diz o economista Marcelo Neri, coordenador da pesquisa.
O Cultivador Usuário que planta maconha em casa mostra o que colheu. Ele diz não apoiar o tráfico. |
Embora ilegal, o tráfico de drogas não infringe outro tipo de lei - a do mercado. Se não houvesse comprador, não haveria venda. O consumidor garante o comércio, mas não é ele quem produz a violência. Drogas são vendidas no mundo todo. Nas ruas de Berlim ou Lisboa traficantes oferecem suas mercadorias para moradores e turistas. Mas vender a droga não implica dominar comunidades inteiras, como os chefões fazem no Rio de Janeiro. "Chegamos a esta situação devido à ausência do Estado nas favelas e também à corrupção policial, que apreende as armas de um traficante e revende para o outro", diz a socióloga Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes.
Culpar o consumidor está em desuso no Brasil. Pela legislação em vigor desde 2006, quem for apanhado consumindo será julgado num juizado especial, não mais criminal. A pena, que antes podia chegar a seis anos de prisão, agora é de prestação de serviços comunitários. O Brasil segue, assim, o pensamento predominante em vários países europeus, como Espanha, Portugal, Bélgica e Alemanha.
Isso não quer dizer que estejamos no caminho certo. Tanto a leniência quanto a linha dura em relação aos consumidores têm resultados contraditórios no mundo. A Holanda liberou o uso de 5 gramas de maconha, que é vendida legalmente em cafés. O consumo de maconha dobrou, mas o de heroína e de outras drogas pesadas caiu. A Holanda tem uma legislação confusa: Os coffee shops podem vender a droga, mas não podem comprá-la. "Isso é uma hipocrisia. Existe tráfico de drogas pesadas perto das lojas, então o problema não foi resolvido", diz o secretário nacional Antidrogas, Paulo Roberto Uchôa.
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Dentro da Lei Como o usuário de maconha é tratado em alguns países | |
[1] BRASIL | [4] HOLANDA A venda, limitada a 5 gramas, é permitida desde 1976 em cafeterias (foto) [5] PORTUGAL O consumo é descriminalizado. Os usuários são encaminhados para tratamento [6] ALEMANHA, [7] BÉLGICA, [8] ESPANHA e [9] FINLÂNDIA O uso é descriminalizado e não implica condenação |
A Suécia foi pelo caminho inverso: Levou para a cadeia vendedores e consumidores, e hoje o número de drogados do país é um terço menor que no restante da Europa. Os Estados Unidos também optaram pela linha dura, mas tiveram resultado oposto: 11% dos americanos admitem consumir maconha e haxixe - e o número cresce 2% ao ano. O total de presos por porte de drogas cresceu dez vezes em 30 anos. No Brasil, segundo uma pesquisa do Cebrid, 22,8% dos entrevistados declararam já ter usado alguma droga pelo menos uma vez na vida. Esse índice coloca o país na média da América Latina (no Chile é de 23%).
Defendida por usuários e por uma corrente de especialistas, a liberação das drogas no Brasil exigiria um investimento em saúde pública que o país é incapaz de fazer. "Não existe hoje, no Rio de Janeiro, sequer cem leitos para atender dependentes químicos menores de idade. Não temos também nenhuma clínica, nem particular, com leitos específicos para menores dependentes de drogas", diz Jorge Jabes, diretor da associação de psiquiatria do Rio de Janeiro e membro da associação americana de psiquiatria. Nos países que descriminalizaram a maconha, o aumento do gasto em saúde foi, pelo menos em parte, compensado pela redução na despesa em segurança pública. No Brasil, onde existe uma guerra permanente entre policiais s e traficantes, a economia tende a ser ainda maior. O Ministério da Justiça ainda não sabe qual o impacto da lei aprovada no ano passado nos tribunais brasileiros. E o que dizem os próprios consumidores?
O carioca João, de 23 anos, começou a fumar maconha na adolescência com seu melhor amigo. Os dois entravam regularmente na favela e fizeram amizade com traficantes. A diversão perdeu a graça no dia em que, por uma dívida não paga, seu melhor amigo foi assassinado. "Como consumidor, eu me senti responsável pela morte dele. Nunca mais consegui fumar um baseado", afirma.
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Carlos, de 25 anos, comprava maconha de um traficante no prédio onde mora. Aos 18 anos, foi preso em flagrante, mas não ficou na cadeia. Por dois anos, foi obrigado a comparecer mensalmente ao fórum. Cumprido o prazo, tornou-se novamente réu primário. Continua fumando maconha, admite que a droga financia a violência, mas acredita que o usuário é a maior vítima desse processo. "Dizer que quem compra um baseadinho não financia o tráfico é acreditar que quem compra um comprimido de aspirina não sustenta a Bayer", diz Paulo Heise, presidente da Associação Parceria Contra as Drogas. A entidade é responsável pela campanha publicitária que mostra o dinheiro do viciado financiando a compra de uma arma que mata uma criança.
A engrenagem que sustenta o tráfico não se alimenta apenas do consumidor. Se os chefões têm tanto poder, em parte é pela falta de ação do Estado. O delegado Orlando Zaconne, autor do livro Acionista do Nada: Quem São os Traficantes de Drogas, afirma que 92% dos presos por tráfico estavam desarmados. "Só prendem os pés-de-chinelo. Pouco se avança nos esquemas de lavagem de dinheiro", diz.
Entre os que condenam o consumo de drogas e os que não se sentem culpados existe uma terceira via. Ela é ilegal, mas evita o problema de consciência de financiar o tráfico. São usuários que optaram por plantar a Cannabis sativa em casa. Um publicitário carioca, de 28 anos, diz cultivar a erva num banheiro de seu apartamento. Diz já ter tido dez pés da planta em casa. Apesar do risco de ser denunciado por um vizinho, ele acredita ter-se livrado da "carga negativa do tráfico". Entre a plantação e a colheita, diz, o processo leva cerca de três meses. "Eu fumo pouco. Garanto maconha para meu consumo por até oito meses", afirma. Financeiramente, o publicitário diz que a operação não é tão vantajosa quanto parece. Mas a droga obtida é mais pura, sem misturas. O cultivo é incentivado em pelo menos 50 comunidades do Orkut, onde é possível encomendar sementes.
No meio do caminho entre traficantes e consumidores estão os pais. Mãe de um estudante de Desenho Industrial de 25 anos, Ana (ela prefere não ter o sobrenome divulgado) acha que a saída é a legalização. "Assim você vai saber quem fuma e com quem se compra a droga. No meu raciocínio, quem não apóia a legalização das drogas está, passivamente, dando apoio à violência urbana, aos tiroteios entre polícia e traficantes, aos grupos armados que dominam as favelas".
Para João Guilherme Estrella, que inspirou o livro Meu Nome não é Johnny, que conta sua história de garoto de classe média que se transformou no maior fornecedor de cocaína para a alta sociedade carioca, legalizar não vai resolver. "As drogas seriam vendidas em farmácias e dariam receita ao Estado. Mas os que ficariam sem essa renda acabariam por buscar outras formas de sobrevivência. As facções que dominam o tráfico de drogas funcionam como empresas. Elas vão precisar encontrar outra fonte de receita". Provavelmente no crime.
''As facções que dominam o tráfico vão buscar outra fonte de renda caso percam o que lucram com as drogas''. - JOÃO GUILHERME ESTRELLA, que inspirou o livro Meu Nome não É Johnny. De classe média, ele fornecia cocaína para a alta sociedade. |
A pesquisa da FGV mostra que 64% dos usuários declarados, apesar de serem de classe média, são vizinhos de áreas dominadas pelo tráfico. "Esse é um dado para o qual os pais deveriam estar atentos", diz Marcelo Neri. Embora a visão do Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, seja limitada e simplista a ponto de pôr no usuário de drogas toda a culpa pela violência, colocou o assunto em pauta. Gerou pesquisas como a da FGV, feita depois que o presidente da entidade, Carlos Ivan Simonsen Leal, viu o filme. O debate é uma forma de buscar saídas para o problema. Como lembra Ana, a mãe de um consumidor, usuários de drogas sempre existirão. Quanto devem ser reprimidos, e quanto devem ser tratados, é uma decisão de cada sociedade.
Em que momento o consumo de uma substância passa a ser considerado ilegal também depende da legislação de cada país. Durante a Lei Seca nos Estados Unidos, que proibia o comércio de bebidas alcoólicas, o poder da Máfia aumentou, assim como as mortes decorrentes das guerras de gângsteres. Para que o tráfico de drogas se torne crime organizado, não basta que haja consumidores. É preciso acrescentar a omissão do Estado, a corrupção policial e a impunidade. Esses fatores precisam ser resolvidos. Mas também não se pode ignorar o papel dos consumidores.
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As frases:
ResponderExcluir"Dizer que quem compra um baseadinho não financia o tráfico é acreditar que quem compra um comprimido de aspirina não sustenta a Bayer" (Paulo Heise);
e
"Quem financia o tráfico é a classe média", (Marcelo Neri);
diz tudo.
Um abraço. Drauzio Milagres.