Limpeza Étnica
Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa - Revista Carta Capital nº 499 de 11/06/2008
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=9&i=1120
O terceiro governo de Silvio Berlusconi começou com inconfundível cheiro de fascismo. Não se trata apenas de meia dúzia de destras em riste. "Tolerância zero contra rom (ciganos), clandestinos e criminosos", disse Berlusconi em campanha, igualando as três categorias. No país da Máfia, da Camorra e da 'Ndrangheta, o inimigo número 1 da segurança, segundo o novo poder e seu aparato midiático, não é o crime organizado, mas os imigrantes que tentam escapar da pobreza ou da perseguição.
Uma semana após a posse, vários acampamentos rom em Nápoles foram incendiados por jovens italianos incitados pela Camorra e pela campanha sensacionalista da mídia berlusconiana sobre uma moça de 16 anos que, flagrada em aparente tentativa de furto, foi apontada como rom (apesar de ser, na verdade, eslava) e acusada de tentar raptar um bebê de acordo com o mais medieval dos estereótipos. Nos dias seguintes, a polícia prendeu não os incendiários, mas 400 dos supostos imigrantes ilegais. Em 21 de maio, foram estes o alvo do primeiro decreto de emergência (medida provisória a ser apreciada em 60 dias pelo Parlamento) do governo.
Assim como, nos anos 30, os judeus foram responsabilizados por todas as aflições da Alemanha e da Europa – embora Hitler tenha precisado esperar dois meses para decretar as primeiras medidas anti-semitas e um pouco mais pelos primeiros pogroms.
Os bodes expiatórios da vez são ciganos da Romênia, mesmo ante o fato de os cidadãos desse país terem livre trânsito na União Européia (UE), como os de qualquer outro integrante. Berlusconi fez da mera presença como indocumentado no país um crime punível com até 18 meses de prisão e expulsão, além de agravante que aumenta em um terço a punição de qualquer outro crime. Alugar moradia a um estrangeiro sem documentos é passível de confisco do imóvel e quatro anos de prisão.
"Uma Itália mais segura, mais tranqüila e mais serena. Com uma cultura homogênea como fundação para suas ações políticas, a Itália será mais forte, mais crível e mais convincente ante a Europa", diz Berlusconi, apesar de governar um país de notória diversidade social e cultural e ter como maior sócio um partido separatista, a Liga Norte. Ou, por isso mesmo, para desviar contra o bode expiatório estrangeiro o medo do futuro que assola a Itália e o mundo desenvolvido e relegar a segundo plano suas divisões internas.
Mas o chefe parece recear ter ido longe demais. Criticado pelas Nações Unidas, pelo Parlamento Europeu e – eleitoralmente mais importante – pelo Vaticano, pareceu voltar atrás em uma reunião da FAO: "Não creio que se possa processar alguém por presença ilegal, mas apenas considerar isso como circunstância agravante de um crime". O ministro do Interior, Roberto Maroni, da Liga Norte, reagiu mal e Berlusconi recuou do recuo: sua opinião é "pessoal" e a responsabilidade agora é dos parlamentares.
É preciso reconhecer que a peculiaridade do governo italiano está menos nas medidas contra a imigração do que na virulência e insistência em aplicá-las contra cidadãos de países da própria UE. Há uma diferença de grau, não de princípio.
Quando as medidas discriminatórias de Berlusconi foram criticadas pela vice-presidente do governo espanhol, María Teresa Fernández de la Vega, e por seu ministro do Trabalho e Imigração, o chanceler de Berlusconi, Franco Frattini, reagiu da maneira mais esperta possível: elogiou a xenofobia dos espanhóis. "Zapatero expulsou dezenas de milhares com métodos muito severos. Seu rigor fez diminuir em 70% a imigração clandestina às Canárias. A Itália poderia tomá-lo como exemplo".
Marcou um ponto, embora a Espanha ainda seja um dos países europeus mais tolerantes. Esse discurso foi inaugurado pela direita, mas os socialistas renderam-se a seu apelo eleitoral. Em campanha contra Mariano Rajoy, José Luis Rodríguez Zapatero vangloriou-se da expulsão de 330 mil imigrantes, 50% mais que nos quatro últimos anos do governo conservador.
Após a vitória, ao analisar os resultados eleitorais e a força da xenofobia nas periferias das grandes cidades, ampliou o prazo de detenção dos indocumentados de 40 para 60 dias e endureceu sua política migratória, cuja moderação era apenas relativa. Que o digam tantos brasileiros impedidos de transitar por Madri com base em não mais que caprichos subjetivos de policiais, motivados por não mais que preconceitos sobre aparência, cor de pele ou bom gosto no vestuário.
Se o critério que separa a barbárie da civilização, a direita da esquerda, consiste em estender a discriminação arbitrária a portadores de passaporte cor-de-vinho, convenhamos que é muito pouco. A linha entre um Zapatero e um Berlusconi está fina demais. Nenhuma vitória é mais completa do que obrigar o adversário a falar sua língua, aderir a seus fins e valores e apenas discutir a adequação dos meios.
Crescem os Centros de Internação de Estrangeiros, criados em toda a Europa à margem do Estado de Direito. No final de 2007, mostrou a reportagem de Caroline Brothers no Herald Tribune, a rede compreendia 224 centros de detenção em toda a Europa, com capacidade total de 30.871 prisioneiros, pessoas à espera de asilo ou ilegais à espera da deportação. No sul da França, usou-se para esse fim, até novembro, um antigo campo de concentração de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, em Rivesaltes.
Com freqüência, os imigrantes permanecem em detenção, arbitrada administrativamente por funcionários sem que o Judiciário possa se pronunciar a respeito e sem que tenham cometido delito algum, por um prazo que o Conselho da União Européia, atendendo a seus integrantes mais xenófobos, acaba de estender a 18 meses. Vários desses centros estão se tornando cenário de motins, ataques incendiários e suicídios.
Criados com precário amparo legal, fecham-se a qualquer controle externo. Um repórter teve negado o acesso aos centros da Grécia e das Ilhas Canárias. Deputados da Esquerda Unida espanhola foram impedidos de inspecionar centros de detenção no próprio país. Berlusconi proibiu até mesmo o acesso do Comissariado para Refugiados da ONU ao centro na ilha de Lampedusa. Piores, provavelmente, são os campos financiados na Líbia por acordos secretos com o governo italiano. O governo de Trípoli nem sequer aderiu à Convenção de Genebra sobre refugiados.
Também na Espanha, os meios de comunicação vinculados à direita transformam em escândalo cada furto protagonizado por africanos, latino-americanos ou europeus do Leste, enquanto delinqüências nativas são tratadas como rotina e convencem seu público de que os imigrantes são os responsáveis pelo colapso da saúde pública.
De fato, nas grandes cidades esperam-se meses por atendimento especializado, mas as razões estão na falta de investimentos em saúde, cortes de gastos públicos e na política de privatização dos serviços. Na Espanha, os imigrantes, 10% da população, cobrem 15% do orçamento da previdência e usam só 5% dos serviços.
São responsabilizados também pela crise de identidade e cultura da própria Europa. O governo conservador de Valência, Espanha, quer impor o "contrato de integração", idéia promovida por Nicolas Sarkozy por toda a Europa e adotada por Rajoy em campanha. Neste caso, os imigrantes terão de prometer respeitar "as leis, os princípios, os costumes e tradições espanholas e valencianas".
Quer-se dos imigrantes que preencham os vazios nas igrejas e procissões abandonadas pelos espanhóis? Que façam a siesta condenada pelas exigências de competitividade e produtividade do capitalismo transnacional? Que preparem paellas e ensaiem o flamenco com trajes típicos, enquanto os jovens valencianos devoram fast-food e ouvem música eletrônica no rigor da moda emo ou punk? Não se poderia pedir prova mais explícita de que se trata de procurar bodes expiatórios para as conseqüências da globalização capitalista, do desemprego às dúvidas existenciais da civilização européia.
* * * * * * * * * * * * * * * *
Entre no Blogger "O Mundo No Seu Dia-a-Dia" e faça seus comentários
Atenção:
Não mostre para os outros o endereço eletrônico de seus amigos.
Retire os endereços dos amigos antes de reenviar.
Não use o campo "Cc:", use sempre o campo "Cco:" (cópia oculta) ou "Bc" [BlindCopy].
Dificulte o aumento de vírus, spams e banners.
Participe desta campanha, incluindo o texto acima em suas mensagens.
* * * * * * * * * * * * * * * *
Isso é muito sério, um precedente perigosíssimo: "Assim como, nos anos 30, os judeus foram responsabilizados por todas as aflições da Alemanha e da Europa – embora Hitler tenha precisado esperar dois meses para decretar as primeiras medidas anti-semitas e um pouco mais pelos primeiros pogroms". Isso foi no passado e a União Europeia está repetindo o mesmo erro no presente. Não aprenderam com a história. Drauzio Milagres.
ResponderExcluir