A Hegemonia em Xeque
Giovanni Arrighi - Carta Capital nº 500 de 18/06/2008
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=8&i=1156
CartaCapital: Em seu livro Adam Smith em Pequim (Origens e Fundamentos do Século XXI), o senhor desenha a perspectiva da decadência econômica americana e a confronta com a ascensão chinesa. Contudo, diz que essa decadência americana se anuncia sem a imediata perda de domínio político no cenário mundial. Como se processaria o domínio sem a hegemonia?
Giovanni Arrighi: A hegemonia, da forma como a entendo, envolve liderança, capacidade de mobilizar outros países de acordo com uma agenda particular. Em outras palavras, significa fazer com que os outros países acreditem em um consenso em torno desse líder, na sua capacidade de agir em favor do interesse dos liderados. Nesse sentido, os Estados Unidos não são mais hegemônicos. Por enquanto, são a maior economia, e aquela com o maior aparato militar. E é precisamente por isso que podem dominar: porque têm um impacto sobre o mundo muito maior do que qualquer outra nação. Esse domínio, contudo, não significa que os outros países necessariamente seguirão sua liderança. Na verdade, eles não a seguem mais. Os Estados Unidos permanecerão dominantes, mas não aptos a liderar o mundo como fizeram, por exemplo, ao final da Guerra Fria. Naquele período, eles eram capazes não só de criar alianças políticas e combinações, mas também tinham o poder de induzir europeus e japoneses a superar antigas diferenças com o objetivo de reconstruir a economia mundial. Agora, os Estados Unidos não têm mais o poder para exercer a liderança rumo à reconstrução. É assim que eles têm o domínio sem a hegemonia.
CC: E essa incapacidade pode permanecer mesmo que o candidato democrata indicado Barack Obama chegue à Presidência?
GA: Obama pode fazer uma diferença, no sentido de que não deverá causar desastres políticos semelhantes aos promovidos pela administração de George W. Bush. Obama e mesmo o candidato republicano John McCain, contudo, estarão em uma posição muito delicada nesse sentido, porque os desastres cometidos por Bush não serão fáceis de reverter. Se houver mesmo uma mudança profunda nas políticas americanas, como Obama parece invocar, embora ainda não se saiba que mudança será, e isso claramente poderá melhorar a imagem dos Estados Unidos não só na Europa, mas também na África e em outras partes do mundo. Essa mudança daria sinais de vida à hegemonia do país. Mas seria uma situação temporária, porque esconderia as causas reais dos problemas americanos.
CC: E quais são esses problemas, na sua visão?
GA: Em primeiro lugar, os Estados Unidos não são os mais competitivos economicamente, à moda do que o foram naquela idade de ouro. São, em verdade, devedores mundiais, e mantêm um déficit na balança para o qual não há perspectiva clara de resolução. A crise hegemônica americana vinha sendo anunciada e deveria acontecer naturalmente, independentemente das ações do governo. Quando os Estados Unidos iniciaram esta guerra no Iraque, tinham a intenção de superar a "Síndrome do Vietnã", a derrota naquela guerra. Bush esperava que a disparidade de forças entre os EUA e o Iraque, se comparadas às dos Estados Unidos e daquele Vietnã apoiado pela força militar soviética, resolvesse a guerra rapidamente. Em outras palavras, George W. Bush esperava que a invasão do Iraque revertesse o veredicto do Vietnã em favor dos Estados Unidos, o que não aconteceu. O Iraque não os ajudou nesse propósito, e as coisas ficaram ainda piores para eles. Os americanos não foram capazes de superar a resistência iraquiana, não criaram um Iraque segundo seus desejos; em lugar de promover a democracia na região, ali instauraram o caos. Nesse sentido, a credibilidade do poder militar americano como uma força construtiva caiu por terra como nunca ocorrera antes. Não é fácil imaginar como alguém possa reverter isso agora.
CC: Mas por que o senhor indica esse ponto de ruptura na administração Bush e não na de Clinton, que o precedeu?
GA: Porque a administração Clinton revelou-se mais inteligente do que esta. A principal diferença entre os dois governos foi a percepção de Bill Clinton de que não deveria contrariar a Doutrina Powell. Essa doutrina estabelecia que, depois da primeira Guerra do Golfo, não se deveria voltar ao Iraque, uma vez que os EUA já demonstraram não saber sair dele – o grande Exército americano, neste caso, não poderia ou deveria ser usado. Havia um entendimento de que esse uso não se provaria eficiente, que não se deveria promover um novo Vietnã, não só em razão dessa doutrina, que estabelecia a cautela na aplicação do poderio militar americano, mas porque o país teria a chance de exercer a hegemonia de maneira mais suave, por meio de um acordo econômico que levaria o nome de globalização. Globalização foi a palavra-chave da administração Clinton.
CC: Ele visualizou na economia um caminho para impor sua hegemonia.
GA: O presidente Clinton conhecia melhor os limites impostos ao poder. Por isso era mais cauteloso na hora de fazer valer sua força militar. Enquanto a guerra travada por sua administração no Kosovo queria mostrar, entre outras coisas, que era dispensável o apoio da ONU às ações americanas aprovadas pela Otan, a Guerra do Iraque iniciada por Bush dispensava até mesmo o apoio da Otan. Contudo, depois de 1997 e 1998, quando o poder econômico "suavizado" de Clinton foi exercido em seu ponto mais elevado, houve uma mudança significativa da relação dos Estados Unidos com o mundo. Em toda parte o déficit aumentou tremendamente. As dívidas americanas cresceram. Os Estados Unidos se viram diante não mais de países do Primeiro Mundo, mas daqueles do Sul global, dos países anteriormente comunistas, como a Rússia. A bolha americana estava se desfazendo. Globalização e liberalização vinham, em realidade, minando o poder dos Estados Unidos. Foi então que o país decidiu voltar militarmente à cena, para restabelecer sua posição no cenário mundial. Em lugar de resolver o problema, os americanos o tornaram maior ainda quando decidiram endurecer. A ação americana se tornou mais efetiva, interna e externamente.
CC: Há algum paralelo possível com os anos 80?
GA: Ronald Reagan, quando ascendeu ao poder, teve problemas semelhantes. Ele introduziu políticas econômicas muito duras e restritivas, que provocaram uma imensa recessão nos Estados Unidos. Mas não há, atualmente, a perspectiva de uma recessão como aquela. Agora, a situação exige encontrar barganhas não somente com os europeus, mas com os novos poderes asiáticos e latino-americanos. Obama pode tentar acomodar as coisas. Mesmo entre os conservadores, há diferentes posições diante dessa situação e não está claro qual delas emergirá. De toda forma, não acredito, como nunca acreditei, que os Estados Unidos venham a passar por uma catástrofe como a recessão dos anos 30. Isso não quer dizer que a crise atual inexista. É uma crise acompanhada de transferência de poder. Mas os Estados Unidos resistem à transferência. Resistir a ela foi o que Bush fez, o que tornou, como sabemos, as coisas piores. É preciso, do ponto de vista do poder norte-americano, que ele encontre formas de tomar pulso novamente da situação.
CC: O senhor diz que a China é a grande vencedora da luta contra o terror patrocinada pelos Estados Unidos após o ataque às torres gêmeas, em 2001.
GA: A China revelou-se mais competitiva economicamente, exercendo o poder nessa base não-militar. Nos anos 80 e 90, ela venceu uma batalha gradual na qual demonstrou mais eficiência econômica do que a Rússia no cenário mundial. A Rússia destruiu seu sistema de planejamento, sem a capacidade que teve a China de se voltar ao mercado. Sem adotar a receita neoliberal do Consenso de Washington, a China foi mais aberta que o Japão, por exemplo, aos investimentos estrangeiros, desde que servissem a seus interesses nacionais. Soube fazer sua industrialização voltar-se à exportação. Mais do que no resto do mundo, na China o governo investe diretamente para promover a colaboração entre universidades, empresas e bancos estatais no desenvolvimento da informática. A China não aceitou a terapia de choque neoliberal. Fez as mudanças gradualmente, o que provou ser acertado. Neste momento, os chineses estão mudando, em seu entorno, a situação de muitos outros países, como os da África, como a própria Rússia, o Brasil, a América Latina. Eles criam uma nova conjuntura, por ser mais competitivos que os Estados Unidos. Estatisticamente, há uma situação de maior igualdade entre as nações depois da ascensão chinesa. A igualdade é crescente também dentro do próprio país. O problema é como manter essa situação em progressão. Há uma nova consciência para os problemas ecológicos e sociais que cresce rapidamente. A dificuldade é que, tratando-se de um país de tão grandes dimensões, a China não pode controlar tudo o que acontece em todas as províncias. É minha posição moderadamente otimista, mas não cega, sobre o que acontece por lá.
CC: Supondo que a China vença a batalha econômica, e faça mesmo esse tipo de "ascensão pacífica", como o senhor anota em um dos capítulos do livro, de que forma conseguirá vencer igualmente a batalha pelas mentes e corações mundiais? Como seria possível aceitar globalmente o estilo chinês de viver, que comporta alguns elementos de repressão e pobreza?
GA: A China, apesar de todos os avanços, é, de fato, um país pobre. Mais pobre, proporcionalmente, que o Brasil e a América Latina (seus índices per capita são mais altos que os da África). Entendo o que está em questão. Como pode ser hegemônico um país que, no fundo, é pobre? Um país pobre que está ausente da tradição ocidental? E está emergindo como um país poderoso, apesar de, em certa medida, ser o mais pobre do mundo.
CC: E como é possível exercer o poder sem impor o próprio modelo de sucesso?
GA: A questão é que os chineses sabem muito bem que não estão oferecendo um modelo para os outros. Eles acreditam, em outras palavras, que seu sucesso é baseado em uma espécie de característica histórico-geográfica que não pode ser reproduzida além dos seus limites. O Consenso de Pequim parece mais aceitável ao Sul global do que aquele de Washington, nos anos 90, já que não oferece uma solução unificada para os problemas dos países. Parece haver o reconhecimento de que a China encontrou um modelo, mas que o modelo dos outros será encontrado por eles próprios. Seu sucesso baseia-se no fato de que o que a China fez não poderá ser seguido por ninguém. Os chineses insistem no respeito às suas soberanias e tradições, e isso parece confortador para todos. O que os outros realizarão a partir disso é problema dos outros. O medo de que o Brasil, os Estados Unidos ou a Europa adotem um modelo político-social parecido com o chinês é baseado em nada, realmente. Além do mais, não há um histórico chinês de tentativa de colonização mundial, antes de autodefesa. Eles sabem que vêm de uma tradição diferente e que não há nada a ganhar impondo-a fora de seus limites. Têm noção de que um consenso em torno do poder econômico é mais produtivo do que em torno do militar, do que uma guerra patética contra um país como o Iraque. É uma simples questão de cálculo.
CC: Ou de pragmatismo.
GA: Sim, eles são muito pragmáticos e sabem que não adianta imitar o Ocidente em certas particularidades. Aprenderam uma lição no Vietnã. Voltaram ao exercício tradicional do poder econômico, não do militar. O poder militar chinês é essencialmente, como eu disse antes, o de autodefesa. O que os chineses não farão é qualquer tipo de concessão em relação a Taiwan ou ao Tibete, porque se baseiam nos limites territoriais desenhados durante o século XVIII. Isso pertence à sua própria doutrina moral, de certa forma. O próprio Dalai-Lama, do Tibete, sabe disso melhor do que ninguém, que não pode conseguir a independência de seu país diante da China da maneira como o Ocidente a desejaria. Nos próximos 20 ou 30 anos haverá muitas surpresas em relação ao que pensamos agora. A grande utopia liberal do Consenso de Washington entrou em colapso, e agora vivemos a grande utopia da emergência asiática, uma diversificação entre os modelos comunistas e capitalistas. O modelo não é preciso, e ainda bem que não o é. Veja que a Europa caminha para uma guinada ao fascismo, como na Itália de Silvio Berlusconi, e temos também Angela Merkel na Alemanha, além de outras figuras do passado. Seria interessante ver Barack Obama neste cenário. Não acho que ele tenha grandes chances de ganhar a Presidência americana, mas as chances existem. Depois de tudo isso, é possível que tenha lugar uma utopia latino-americana.
CC: O senhor realmente acredita nessa possibilidade?
GA: A América Latina tem promovido guinada. Se considerarmos o que houve politicamente na região nos anos 70, a emergência de ditaduras militares, esse momento traduz uma mudança considerável. Houve períodos de um revival democrático, depois uma tentativa de liberalismo, e agora a América Latina entrou nesse período de crítica do regime liberal. É uma nova cultura, talvez. Em termos de relações econômicas internacionais, a América Latina tem as melhores chances em muitos anos, em razão também dessa ascensão chinesa. Está-se criando uma grande unidade continental. Claro que essa evolução também precisa ser traduzida em termos de reformas sociais.
CC: O senhor tem uma opinião sobre a posição do presidente do Brasil neste cenário?
GA: Lula é uma imagem mista, como você sabe. Internacionalmente, creio eu, ele está indo muito bem, tentando preservar esta porção do continente diante de uma investida norte-americana. Economicamente, não sou tão crítico quanto à disciplina adotada por seu governo, porque suas decisões têm dado ao Brasil uma condição de maior independência em relação às outras nações. Socialmente, não sou familiarizado com a situação brasileira para emitir opiniões.
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É preciso haver mais igualdade no mundo, entre as nações. Quanto mais rápido diminuir/acabar a hegemonia dos EUA melhor será o mundo. Não é desejável a queda do "império norte-americano", mas que ele deixe de ser um império e negocie com o resto do mundo em condições de igualdade. Um abraço. Drauzio Milagres.
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