Fraudes em nome de Deus
Dalmo de Abreu Dallari - Observatório da Imprensa - 16/03/2010
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/
Dalmo de Abreu Dallari - Observatório da Imprensa - 16/03/2010
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Um fenômeno social que vem ganhando corpo nos últimos tempos é o aparecimento de grupos autodenominados religiosos, que, geralmente sob a direção de um líder, arrebanham adeptos, atraindo pessoas, quase sempre pouco esclarecidas ou socialmente frágeis, ou, ainda, dissidentes políticos ou religiosos aos quais oferecem um instrumento de oposição, e logo procuram formalizar a existência do grupo como uma nova igreja. E assim procuram obter proveitos materiais de várias espécies, em fraude à lei. Isso explica o aparecimento de novas igrejas em diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil.
Percebendo a ocorrência desse fenômeno e desejando conhecê-lo melhor, para, entre outras coisas, despertar a opinião pública para os graves prejuízos individuais e sociais que isso pode acarretar, dois jornalistas ligados à Folha de S.Paulo, Cláudio Ângelo, editor de Ciência, e o repórter Rafael Garcia, decidiram criar experimentalmente uma nova igreja, evidentemente fundada numa fantasiosa crença religiosa.
Para tanto, com o objetivo de evidenciar a tranquila possibilidade legal de consumar essa fraude, solicitaram a orientação de um dos mais prestigiosos escritórios de advocacia de São Paulo, respeitadíssimo pelo alto nível de conhecimentos e pelo rigoroso padrão ético de seus integrantes - o escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian Associados. E assim adotaram as providências legalmente exigidas para concretizar a criação da igreja de fantasia.
Exploração da ignorância
Verificaram, então, que não existem requisitos teológicos ou doutrinários para a criação de uma igreja, não havendo também a exigência de um número mínimo de fiéis. Redigiram um documento de fundação do que denominaram Igreja Heliocêntrica do Sagrado Evangelho e fizeram a inscrição da entidade no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, obtendo assim o número do CNPJ.
Com base nesse documento abriram uma conta bancária, fazendo várias aplicações financeiras, gozando de isenção dos tributos normalmente incidentes sobre operações dessa espécie, pois, segundo a Constituição, no artigo 150, inciso VI, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto.
Nessa mesma linha, a nova igreja poderá adquirir e vender imóveis, realizar transações econômicas, cobrar pela prestação de serviços e praticar outros atos que beneficiem pessoalmente os criadores e dirigentes da igreja, sem que sejam obrigados a pagar o IPVA, o IPTU, o ISS e qualquer outro tributo. E como as igrejas são absolutamente livres para definir sua organização e direção e para admitir e manter seus sacerdotes, que, nessa condição, ficam isentos da obrigação de prestar o serviço militar obrigatório, um dos dirigentes designou seus próprios filhos como sacerdotes, garantindo-lhes, desse modo, essa isenção, devendo-se ainda acrescentar que, além desse privilégio legal, os sacerdotes terão direito a prisão especial, se forem envolvidos numa ocorrência policial.
Acrescente-se, ainda, que os dirigentes da igreja poderão indicar os imóveis de sua residência como sendo templos da igreja e assim ficarão isentos dos tributos municipais.
Essa iniciativa dos jornalistas, levada a efeito discretamente e sem procurar provocar escândalo, é merecedora do maior elogio e deve ser amplamente divulgada, para chamar a atenção dos que podem e devem influir para impedir a multiplicação fraudulenta de igrejas. Essa fraude deve merecer especial atenção dos legisladores e dos governos, pois além de acarretar enormes prejuízos a todo o povo, por criar a possibilidade de intensa atividade econômico-financeira sonegando tributos, alimentam-se da exploração da ignorância e da fragilidade de pessoas das camadas mais pobres da população.
Ação educativa
Bem ilustrativo da audácia desses exploradores da ignorância e da ingenuidade de pessoas mais simples é a notícia da criação de uma linha telefônica para falar com Deus, fato divulgado pelo jornal francês Le Monde (4/3/2010, pág. 26).
Conforme registra com ironia aquele jornal, foi criado um novo serviço telefônico, "Le Fil du Seigneur", iniciativa da sociedade Aabas Interactive. Fornecendo os dois números disponíveis para as ligações, informa o jornal que o custo das ligações é de 15 centavos de euro para as ligações comuns e de 34 centavos para as ligações urgentes e diretamente dirigidas a Deus.
Quem ligar para o serviço ouvirá uma gravação dizendo: "Você está em presença de Deus para o recolhimento e a prece a fim de receber sua graça". Acrescenta o jornal, sempre ironizando, que os promotores desse piedoso serviço não estão autorizados a conceder absolvição por telefone, mas os interessados podem deixar sua confissão. E para acentuar os objetivos de apoio e edificação espiritual, uma gravação diz no início: "Para receber conselhos, digite 1; para confessar, digite 2; para escutar confissões de outros, digite 3".
Parece absurda a criação de um "serviço" dessa natureza, mas o fato de ele continuar existindo é um sinal de que também existem usuários, o que deixa evidente que há ambiente para audácias desse tipo.
Num pronunciamento recente, o presidente da Ordem dos Advogados de Angola chamou a atenção para o surgimento e a multiplicação de práticas ilegais naquele país, ligadas justamente à exploração de crenças religiosas. E observou: "Não me surpreende o surgimento de crimes ligados à exploração religiosa, porque onde há pobreza, ignorância e um nível cultural extremamente baixo há propensão para que essas práticas religiosas duvidosas prevaleçam e tenham espaço".
E sublinhando que a legislação angolana exige um mínimo de cem mil aderentes para a existência de uma igreja, o que considera bom mas insuficiente para impedir as fraudes, acrescentou que "é responsabilidade do Estado, nos termos da lei, controlar para que o direito de liberdade religiosa não seja utilizado para fins contrários ao que está previsto na Constituição", considerando necessária uma ação educativa do Estado, mas também uma ação repressiva, para impedir práticas que, sob a máscara de atividades religiosas, prejudiquem os direitos de outros cidadãos e a própria ordem pública.
Necessário e urgente
Observe-se, afinal, que esse fenômeno da exploração religiosa, muito oportunamente posto em evidência pelos jornalistas da Folha de S.Paulo, vem preocupando vários países da Europa. Assim, na França já estão em vigor três leis tratando de questões relativas ao surto de organizações religiosas e suas repercussões legais. A primeira é de 18 de dezembro de 1998 e cuida, sobretudo, do problema do acesso de crianças à escola, que é obrigação dos pais e vinha enfrentando obstáculos sob alegação de motivos religiosos. A segunda, de 15 de junho de 2000, deu legitimidade às associações civis que lutam contra as seitas para propor ou integrar ações judiciais, inclusive na área penal, nesse âmbito. A terceira lei, de 12 de junho de 2001, trata dos movimentos sectários que atentam contra os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Esta lei permite a propositura de ação contra fatos que podem ser qualificados como "abusos fraudulentos do estado de ignorância ou de fragilidade", com agravantes quando praticados contra crianças ou pessoas em situação de fraqueza.
Essas questões já vêm sendo objeto de considerações do Conselho da Europa, que em 1992 fez recomendações relativamente às seitas e aos novos movimentos religiosos e em 1999 reforçou seu pronunciamento considerando as atividades ilegais das seitas. Como fica evidente, há uma situação nova envolvendo as questões religiosas, com efeitos graves sobre os direitos.
Por tudo isso, é muito oportuna a advertência sobre o que vem ocorrendo no Brasil nessa área. A Constituição brasileira declara inviolável a liberdade de consciência e de crença, mas ao mesmo tempo diz, no artigo 5°, inciso XVII, que é plena a liberdade de associação "para fins lícitos". É evidente que o uso fraudulento da invocação religiosa nada tem a ver com a liberdade de crença e, ainda mais, por suas conseqüências de ordem prática, acarreta graves prejuízos a todo o povo, confere privilégios injustos e cria uma situação de conflito, opondo as organizações desonestas às instituições que se fundamentam, autenticamente, em crenças religiosas.
Assim, pois, é necessário e urgente que o tema seja posto entre as prioridades brasileiras, para que se tenha uma legislação que, mantendo a laicidade do Estado, garanta a liberdade de crença com pluralidade, coibindo a invocação fraudulenta dessa liberdade.
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É fato sabido que a religião sempre foi, ao longo da história humana, um produto muito bem exlorado inclusive por pessoas que, sem terem em seu núcleo quaisquer tendências realmente sacras, pretendem explorar as brechas de lei e a ignorância do povo.
ResponderExcluirPena é que, independente de se poder provar ou não a legitimidade de uma religião, os carentes em busca de fé se recusem a não ver que são iludidos.
E, assim como crime, drogas e violência, a religião se torna mais uma forma de tristeza social.
Grade postagem, meu amigo. Aliás, gostei tanto de teu texto que tomei a liberdade de mandar o link de tua página a meus contatos via twitter.
Abração e parabéns pelo excelente conteúdo.
Meu Deus,
ResponderExcluirAonde chegaremos com tanta gente de pouca fé?
Estou abismada.
Um abraço.
Eu tenho pena das pessoas que utilizam do nome de Deus em questões fraudulentas e para beneficio financeiro. Seja qual for o tipo de mentira e abuso utilizado, é desalentador ver que cada dia mais pessoas que zombam da fé cega e inocente de muitos.
ResponderExcluirIsto para quem é Cristão e tem um pouco de conhecimento biblico sabe o que é e o que significa, que quando se aproxima se o tempo fim, pois ele mesmo Jesus disse; que viriam muitos em seu nome fazendo prodigios e milagres, mas que deveriamos nos cuidar destes também, portando ai esta algo profetizado a quase 2 mil anos acontecendo vivamente nos dias de hoje.
ResponderExcluirCaro amigo Drauzio,
ResponderExcluirA classe política brasileira nunca irá tomar alguma atitude em relação as igrejas, por mais fraudulentas que sejam, pois para a nossa classe política, cada templo é um curral eleitoral em potencial.
Para o governo, ter muitas igrejas é muito benéfico, pois torna a população mansa e manipulavel.
Na Europa as coisas acontecem pois uma boa parcela da população de lá tem cultura, infelizmente no Brasil a realidade é outra.
Os fieis brasileiros se recusam a enchergar a verdade sobre as igrejas que frequentam.
Um grande abraço
Giba
Amigo, Drauzio!
ResponderExcluirTudo isso é fruto da pouca evolução espiritual da maioria dos seres humanos.
Um abraço
o desespero dos seres humanos, a procura da ajuda de Deus neste mundo com tanto sofrimento, deixa os seres humanos fracos. e ai vem os fortes mal feitores, e tiram proveito dos coitados..
ResponderExcluirPobre Brasil !!!! Falta de educação e consciência só pode dar nisto !!! É uma tremenda vergonha.....Religião continua sendo o ópio do povo e alegria dos espertos....
ResponderExcluirFranklin