Pelas Frestas da América
Márcia Pinheiro - Revista Carta Capital nº 482 de 13/02/2008
http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=9&i=80
Márcia Pinheiro - Revista Carta Capital nº 482 de 13/02/2008
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Alojamentos fétidos, homens e mulheres empilhados em camas minúsculas, banheiros sem água, documentos retidos e quartos trancados, para evitar fugas. A repugnância causada pela cena soa familiar e remete o leitor a fazendas mal fiscalizadas nos rincões do Brasil ou a linhas de montagem em nações emergentes, como China e Índia, que se tornaram o chão de fábrica da engrenagem de produção global. Só que a selvageria acontece nos Estados Unidos, exatamente na Flórida, em Oklahoma e em Saipan (protetorado americano situado no Oceano Pacífico).
É sobre o trabalho escravo em território americano que, por sete anos, se debruçou John Bowe, jornalista colaborador dos periódicos The New Yorker e The New York Times Magazine. Com uma diferença: ele põe o dedo na ferida do país que alardeia liberdade, respeito aos direitos civis e igualdade. As situações de abuso que testemunhou resultaram no livro Nobodies, publicado em 2007 pela Random House e disponível apenas em inglês nas livrarias brasileiras.
"A mídia cortou as verbas para a apuração nos EUA. Ninguém mais viaja e conversa com os pobres. Os jornalistas estão plugados a laptops e telefones. Quantos imigrantes pobres têm celulares ou computadores?", diz à CartaCapital. A inquietação permeia toda a correspondência por e-mail, trocada por vários dias entre Bowe e a revista, pois ele ainda vive em Saipan, 15 horas de diferença de fuso horário com São Paulo. "Decidi bancar o projeto, com o suporte financeiro de algumas palestras em universidades e um prêmio de 12 mil dólares que ganhei com uma reportagem", diz o autor, hoje com 43 anos.
O livro é dividido nas três regiões onde o jornalista apurou as histórias. Os casos sobre a Flórida são familiares aos brasileiros. Só de partida. Todos sabem que milhares emigraram para os Estados Unidos, para tentar a sorte. Muitos deles de maneira ilegal, sem passaportes, que desembolsaram entre 10 mil e 15 mil dólares para ser guiados por coiotes através da fronteira com o México. Pouco se sabe, no entanto, e o livro conta em que armadilha alguns caem quando "bem-sucedidos" na travessia.
Boa parte vira colhedora de tomates e laranjas, que enchem os cofres da KFC, Burger King, Pizza Hut, Tropicana (da Pepsi) e Minute-Maid (da Coca-Cola). Indiretamente. Há sempre um intermediário latino-americano, que dá as ordens. Daí a dificuldade de os casos serem levados aos tribunais. "Os fazendeiros da Flórida venderam uma caixa de tomates de 11 quilos por 10,27 dólares, em média, entre 2005 e 2006. Os imigrantes que colhem os frutos recebem 45 centavos por caixa. Para ganhar 50 dólares ao dia, um trabalhador teria de colher 2 toneladas de tomate", diz um trecho do livro-reportagem. "Após sete dias de trabalho, o capataz deduz da remuneração 40 dólares pelas refeições, 30 pelo alojamento e outros 30 pelos sacos usados para colher a produção." Mesmo trabalhando de 14 a 16 horas ao dia, sobram apenas 67 dólares semanais para o bóia-fria local, segundo o entrevistado mexicano García Orozco, que cruzou a fronteira em 2001 e se tornou um ativista antiescravidão.
Há clareza para os trabalhadores de quem é o colonizador (americano) e quem é o colonizado (latino-americanos)? Bowe diz que as situações são confusas. No caso da Flórida, o agronegócio é claramente beneficiado, com o apoio das classes média e alta, além dos acionistas das empresas. "Há uma imensa pressão para achatar os salários", afirma. Mas o bad guy aparece sempre sob a forma de um mexicano de pele escura. Os imigrantes não têm idéia de que, acima do bandido que fala sua língua, há uma rede de interesses muito poderosa. "Conversei com um menino guatemalteco, que caiu do caminhão quando colhia tomates, e perguntei: quem é o seu patrão? Ele não sabia. Só disse que um sujeito com o apelido de Shorty o levava para o trabalho".
Já na cidade de Tulsa (Oklahoma), a relação senhor/escravo não poderia ser mais clara. Quem mandava era a empresa JPC, pertencente ao empresário americano John Pickle. Ele expandiu os negócios de siderurgia no Oriente Médio, mas faltava-lhe mão-de-obra especializada no Kuwait. "O povo lá não gosta de trabalhar", disse Pickle ao autor, sem meias palavras. A solução foi importar trabalhadores da Índia a ser treinados nos EUA e posteriormente enviá-los ao país produtor de petróleo.
Inicialmente, seria um programa de treinamento. Só que o empresário percebeu o quão vantajoso era manter os indianos, a maioria soldadores, na fábrica em Tulsa. Documentos retidos, instalações precárias e proibição de sair à noite pela cidade foram as leis da JPC. No mais, por que pagar 5,15 dólares por hora a um soldador americano se o trabalhador indiano recebia apenas 3,17 dólares? Nesse ponto da pesquisa, Bowe chegou à conclusão de que o estado de paz e liberdade nunca foi óbvio e fácil na história da civilização. "Nós (os homens) pertencemos a uma espécie sombria", afirma.
Na distante ilha de Saipan, a atividade econômica sempre foi mesclada por escravidão sexual, uma espécie de bordel paradisíaco, freqüentado por endinheirados. Com a globalização, tornou-se um celeiro de trabalhadores baratos para a indústria têxtil, vindos das regiões paupérrimas da China. Grandes corporações da moda, descreve o livro, como Ralph Lauren/Polo, Calvin Klein, Liz Claiborne e Sears, são ao menos cúmplices nas acomodações inadequadas, salários irrisórios e acusações de que muitas mulheres grávidas são obrigadas a optar entre o aborto e o emprego.
Em todas as páginas, Bowe foi preciso em documentar os fatos, com processos judiciais, depoimentos das vítimas e visitas às instalações fabris mencionadas. Ainda assim, ele se cansa de explicar por que classifica tal tipo de trabalho como escravo e não um mero desrespeito à relação trabalhista. CartaCapital pergunta se é difícil, para o americano médio, admitir que isso ocorra em seu país. "Sim. Fiquei surpreso nas entrevistas após a publicação do livro. Todos os jornalistas perguntaram: isso é escravidão? De um lado, os americanos sentem-se confortáveis porque, teoricamente, são sensíveis à desigualdade de renda. Ponto. De outro, eles repelem quem os faz pensar ou discutir a situação com mais profundidade, porque é meio caminho andado para a depressão", define.
O autor de Nobodies acredita firmemente que apenas as organizações de trabalhadores são capazes de conter a fúria exploratória. Houve casos de sucesso na Flórida, Tulsa e Saipan, com a punição dos maus empregadores. "É preciso fazer barulho e atrair a atenção da mídia para os governos se mexerem", diz. Em relação ao próximo projeto, após sete anos de pesquisa sobre escravidão, Bowe é simples: "Quero escrever algo que torne minha alma feliz novamente. Será sobre o amor, sobre pessoas que ajudam as outras e as tornam merecedoras de respeito". Em tempo: o autor ainda mora em Saipan, porque se apaixonou por uma moça local e espera que ela concorde com sua proposta de levá-la para Manhattan. Faz todo o sentido.
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O País mais hipócrita do Mundo (E.U.A.), que se coloca como "a polícia do mundo" tem essa vergonha no seu próprio quintal, e pouco ou nada fazem para mudar. Um abraço. Drauzio Milagres.
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