A Fragilidade do Homem
Revista Época nº 506 de 28/01/2008
André Fontenelle, Cristiane Segatto e Sezane Frutuoso
Fotos - Michael Marlin, André Valentin, Frederic Jean e Márcia Lourenção
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81341-8055-506,00.html
André Fontenelle, Cristiane Segatto e Sezane Frutuoso
Fotos - Michael Marlin, André Valentin, Frederic Jean e Márcia Lourenção
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O caso de Nenê, o jogador de basquete que enfrenta um câncer de testículo,
chama a atenção para o preconceito que dificulta a prevenção desse tipo de doença.
chama a atenção para o preconceito que dificulta a prevenção desse tipo de doença.
Sobrevivente
Nenê com o uniforme do Denver Nuggets.
A descoberta precoce - e acidental - do câncer provavelmente salvou sua vida.
A descoberta precoce - e acidental - do câncer provavelmente salvou sua vida.
Na sexta-feira 11, horas antes da partida entre o Denver Nuggets e o Orlando Magic, o site da NBA a liga profissional de basquete dos Estados Unidos, publicou uma lacônica mensagem em inglês sobre o jogador brasileiro Nenê, do Denver. "Nenê Hilário tirou uma licença por tempo indefinido, por razões médicas pessoais. Sua equipe informou que, em respeito à privacidade e ao desejo de Nenê, divulgará maiores informações quando disponíveis." A formulação misteriosa do texto desencadeou uma série de rumores.
Nenê, de 25 anos, cujo nome completo é Maybyner Rodney Hilário (o "Maybyner" é uma seqüência de letras aleatórias escolhidas pelos pais), é um dos atletas brasileiros mais bem pagos. Descoberto por um olheiro da NBA em 2001, quando disputava um torneio pela seleção brasileira, Nenê chegou a Denver em 2002. Seu potencial até hoje não foi totalmente realizado, em parte devido a seguidas lesões. Mesmo assim, em 2006, ele assinou um contrato de seis anos e US$ 60 milhões com o Denver.
Nos últimos anos, o nome de Nenê tem sido presença constante na lista de jogadores machucados da NBA, mas desta vez o tom da nota indicava um problema bem mais grave. Um comunicado com declarações de Nenê só atiçou a boataria. "Estou bastante chateado porque terei de adiar minha estadia com o time para cuidar da minha saúde. É difícil seguir em frente quando as coisas parecem ir tão bem... Quero voltar à quadra o mais rápido possível para ajudar meus companheiros. Eu e minha família pedimos respeito a nossa privacidade", dizia Nenê.
Fãs de basquete começaram a discutir o caso nos fóruns da internet. Falou-se em aids, aneurisma e câncer. Alguns mataram a charada de imediato - era um tumor testicular -, mas a notícia só foi confirmada na terça-feira 15. O "respeito à privacidade" pedido por Nenê seria devido a um mal tão perigoso quanto o câncer - a vergonha. Milhares de casos de câncer em homens, no pênis, nos testículos ou na próstata, deixam de ser detectados e tratados no estágio inicial, quando a chance de cura é mais alta, devido ao preconceito. "A prevenção só vai se disseminar se os homens que tiverem a doença contarem e aconselharem", diz o jornalista Leão Serva, um sobrevivente de câncer de testículo (leia seu depoimento mais abaixo).
Nenê teve sorte, pois seu tumor foi detectado em estágio inicial. Foi informado do problema dois dias antes do anúncio na internet. Um exame antidoping de rotina, feito por seu time, havia detectado a presença anormal do hormônio beta-hCG na urina do jogador. Em mulheres, o hCG é um indicador de gravidez; em homens, é um forte marcador da presença de um tumor.
Nenê, de 25 anos, cujo nome completo é Maybyner Rodney Hilário (o "Maybyner" é uma seqüência de letras aleatórias escolhidas pelos pais), é um dos atletas brasileiros mais bem pagos. Descoberto por um olheiro da NBA em 2001, quando disputava um torneio pela seleção brasileira, Nenê chegou a Denver em 2002. Seu potencial até hoje não foi totalmente realizado, em parte devido a seguidas lesões. Mesmo assim, em 2006, ele assinou um contrato de seis anos e US$ 60 milhões com o Denver.
Nos últimos anos, o nome de Nenê tem sido presença constante na lista de jogadores machucados da NBA, mas desta vez o tom da nota indicava um problema bem mais grave. Um comunicado com declarações de Nenê só atiçou a boataria. "Estou bastante chateado porque terei de adiar minha estadia com o time para cuidar da minha saúde. É difícil seguir em frente quando as coisas parecem ir tão bem... Quero voltar à quadra o mais rápido possível para ajudar meus companheiros. Eu e minha família pedimos respeito a nossa privacidade", dizia Nenê.
Fãs de basquete começaram a discutir o caso nos fóruns da internet. Falou-se em aids, aneurisma e câncer. Alguns mataram a charada de imediato - era um tumor testicular -, mas a notícia só foi confirmada na terça-feira 15. O "respeito à privacidade" pedido por Nenê seria devido a um mal tão perigoso quanto o câncer - a vergonha. Milhares de casos de câncer em homens, no pênis, nos testículos ou na próstata, deixam de ser detectados e tratados no estágio inicial, quando a chance de cura é mais alta, devido ao preconceito. "A prevenção só vai se disseminar se os homens que tiverem a doença contarem e aconselharem", diz o jornalista Leão Serva, um sobrevivente de câncer de testículo (leia seu depoimento mais abaixo).
Nenê teve sorte, pois seu tumor foi detectado em estágio inicial. Foi informado do problema dois dias antes do anúncio na internet. Um exame antidoping de rotina, feito por seu time, havia detectado a presença anormal do hormônio beta-hCG na urina do jogador. Em mulheres, o hCG é um indicador de gravidez; em homens, é um forte marcador da presença de um tumor.
Vitoriosos
Boggis superou o câncer de próstata
Colovati o de testículo
Santos o de pênis
Kim, por acaso, já era um dos melhores amigos de Nenê em Denver. Conheciam-se por intermédio do sogro do médico, dirigente de basquete. Nenê costuma comer pizza aos domingos na casa dos Kims e havia passado com eles o último Natal. O telefone de Kim tocou à noite. "Estou com um problema, você pode me ajudar?", perguntou Nenê. Kim recomendou aguardar novos exames. Quando eles confirmaram a presença de um tumor no testículo direito, Nenê foi ao consultório de Kim, que explicou: provavelmente o tumor era maligno - é assim em quase todos os casos - e seria preciso retirar o testículo direito. A operação não podia tardar, pois células cancerosas já poderiam ter se espalhado pelo corpo, o que é conhecido como metástase.
Na segunda-feira 14, Nenê deu entrada no Denver Health Medical Center. Kim optou por anestesia geral. A orquiectomia radical (nome técnico da cirurgia) é um procedimento simples, mas delicado. Uma incisão é feita na virilha, por onde o testículo é cuidadosamente retirado - apertá-lo pode espalhar células cancerosas.
A operação foi um sucesso. Exames de sangue e tomografias dos pulmões, do abdome e da pelve não encontraram indício de metástase. O tumor, de cerca de 1,5 centímetro de diâmetro, era, como se esperava, maligno. Inicialmente a assessoria de Nenê divulgou que o tumor era benigno. Retirada horas depois do site do jogador, a informação estava errada. Na segunda-feira 21, em entrevista a ÉPOCA, Fernando Kim esclareceu que o tumor era mesmo maligno. Mas deu uma boa notícia: como não houve metástase, Nenê tem quase 100% de chance de não voltar a ter câncer. Pelos próximos dez anos ele terá de fazer exames periódicos para monitorar uma possível recorrência do câncer.
Se o diagnóstico favorável se confirmar, Nenê entrará para uma lista de atletas famosos que sobreviveram ao câncer. O mais famoso deles é o ex-ciclista americano Lance Armstrong. Em 1996, aos 25 anos, Armstrong descobriu que tinha um câncer testicular, com metástase no cérebro e nos pulmões. Submetido a uma orquiectomia, a cirurgias no cérebro e a uma pesada quimioterapia, o ciclista recuperou-se inteiramente. Voltou a pedalar e, entre 1999 e 2005, ganhou sete vezes consecutivas a Volta da França, um dos maiores feitos da história do esporte. Apesar das freqüentes acusações de doping - há quem diga até que seu câncer tinha relação com o uso de substâncias proibidas -, Armstrong se tornou um popular ativista da luta pelo apoio às vítimas de câncer. Foram vendidos 70 milhões de cópias da pulseira amarela Livestrong (literalmente, "viva forte", um trocadilho com seu nome), símbolo da campanha. "O câncer me ensinou a ter objetivos", disse Armstrong.
Apesar da alta taxa de cura do câncer de testículo, a descoberta da doença e o tratamento podem abalar a sexualidade masculina. O tratamento-padrão envolve a remoção cirúrgica de todo o testículo, quimioterapia e radioterapia. "Em alguns casos em que o tumor é pequeno e descoberto precocemente, apenas a cirurgia pode ser suficiente", diz o médico Gustavo Cardoso Guimarães, do departamento de cirurgia pélvica do Hospital A.C. Camargo, antigo Hospital do Câncer, em São Paulo. No caso de Nenê, o tipo de tratamento ainda depende do resultado de novos exames.
A retirada de somente um dos testículos, como ocorreu com Nenê, nem sempre provoca infertilidade. A quimioterapia e a radioterapia podem provocá-la, sobretudo em pacientes que já produzem poucos espermatozóides antes da operação. Por isso, muitos pacientes que desejam ter filhos congelam esperma antes do tratamento. Fernando Kim não informou se Nenê optou pelo congelamento de esperma.
Quando o tumor extrapola a região do testículo e atinge áreas próximas, a cirurgia pode comprometer nervos responsáveis pela ejaculação. O homem tem ereção, mas o esperma não é expelido. Foi o que aconteceu com Fabrício Colovati, um supervisor de logística de 26 anos. Em 2003, seu testículo esquerdo começou a doer e a inchar. Tumor detectado, Fabrício sentiu confiança no cirurgião e decidiu não perder tempo. Foi operado uma semana depois. Optou-se por não fazer uma quimioterapia preventiva. Seis meses depois, no entanto, um novo tumor surgiu e invadiu uma região muito maior, chegando a comprometer um dos rins. A cirurgia foi muito mais complicada. Fabrício fez quimioterapia. Há quase cinco anos está sem sinais da doença. "Nunca achei que minha masculinidade seria atingida. Isso ficou bem resolvido na minha cabeça. Só fiquei triste por não poder engravidar minha mulher naturalmente", diz. Evangélico, Fabrício diz ter se casado virgem há seis meses. "Minha religião me ajudou muito a superar o problema".
Felizmente, o câncer de testículo é bastante raro. No Brasil, estima-se que existam de três a cinco casos anuais para cada 100 mil homens. Mas ele costuma acometer homens jovens, entre 15 e 35 anos. Muitas vezes, a demora em procurar atendimento faz com que os homens percam a chance de se salvar e viver com menos seqüelas. "Mulheres jovens vão ao ginecologista regularmente desde a adolescência. Rapazes não vão ao urologista", diz o médico Gustavo Guimarães. "Mesmo quando percebem algo estranho, eles têm vergonha de falar no assunto." Esse é o maior erro.
A principal causa da doença é a criptorquidia (quando o testículo não desce corretamente da cavidade abdominal onde se desenvolve durante a vida uterina). Outros fatores de risco são atrofia testicular, antecedente familiar e infecção pelo vírus da aids. Fazer o auto-exame, ou seja, apalpar os testículos regularmente à procura de anormalidades, é a melhor forma de evitar a escalada da doença (veja o quadro abaixo).
Um baque ainda maior na sexualidade masculina é provocado pelo câncer de pênis, considerado uma das vergonhas da saúde pública nacional. O Brasil é um dos campeões mundiais desse tipo de câncer, com uma taxa entre 2,9 e 6,8 casos por 100 mil. A razão: falta de higiene, decorrente da pobreza e da baixa instrução.
Evitar a principal causa de câncer de pênis é muito fácil. Basta lavar o órgão diariamente. O tumor é causado pelo acúmulo de bactérias na glande. A higienização é mais difícil nos homens que sofrem de fimose (constrição ou rigidez do prepúcio, a pele que recobre a glande). Nesses casos, a circuncisão resolve o problema e evita o câncer - razão pela qual a doença é praticamente inexistente entre os judeus, que circuncidam os recém-nascidos.
Como os sinais iniciais do câncer de pênis se assemelham a uma doença venérea, muitos homens acham que basta tomar qualquer antibiótico. A doença avança e a amputação parcial ou total torna-se a única saída. No Hospital do Câncer de Pernambuco, ocorrem em média quatro amputações de pênis por mês, segundo o médico Artur Lício Rocha Bezerra.
O funileiro cearense José Maria dos Santos, de 53 anos, morador de São Paulo, teve de enfrentar a perda de parte do pênis. Nunca tinha ouvido falar na doença e não desconfiou de nada quando percebeu os primeiros sinais. "Apareceu uma ferida que ardia demais quando eu fazia xixi", diz. A cirurgia parece ter resolvido o problema e deixado poucas seqüelas. "Fiquei só dois meses sem relação sexual depois da cirurgia. Sou o mesmo de antes".
Os três pesadelos masculinos
Os tumores de próstata, testículo e pênis ameaçam a vida sexual do homem.Quando o diagnóstico é precoce, as seqüelas são reduzidas e a chance de cura é altíssima.
O câncer masculino mais comum, o de próstata (52 casos para cada 100 mil brasileiros), é uma das principais ameaças dos homens de meia-idade. A melhor forma de combatê-lo é o diagnóstico precoce. A partir dos 50 anos, todos os homens devem fazer anualmente o exame de toque retal no consultório do urologista. Um exame de sangue também pode revelar alterações nos níveis do antígeno prostático específico (PSA), um marcador da presença do câncer.
A chance de cura quando o tumor está restrito à próstata é superior a 80%. Quando a doença já invadiu outras estruturas, porém, a cura é muito difícil. O executivo carioca Roberto Ian Boggis, de 56 anos, agiu rápido. Assim que os exames revelaram um tumor de 3 milímetros, ele decidiu submeter-se à extração da próstata. A recuperação não foi fácil. Boggis teve de fazer fisioterapia para evitar a incontinência urinária. "Imagine o que é isso para a auto-estima de um homem", diz. Boggis afirma que hoje está recuperado e a vida sexual voltou ao normal. "Não ejaculo, mas não ligo. Agora também posso fingir orgasmo", diz, brincalhão. Assumir que o corpo não vai bem e superar a vergonha de ir ao médico é fundamental para que os homens possam viver mais e melhor.
A chance de cura quando o tumor está restrito à próstata é superior a 80%. Quando a doença já invadiu outras estruturas, porém, a cura é muito difícil. O executivo carioca Roberto Ian Boggis, de 56 anos, agiu rápido. Assim que os exames revelaram um tumor de 3 milímetros, ele decidiu submeter-se à extração da próstata. A recuperação não foi fácil. Boggis teve de fazer fisioterapia para evitar a incontinência urinária. "Imagine o que é isso para a auto-estima de um homem", diz. Boggis afirma que hoje está recuperado e a vida sexual voltou ao normal. "Não ejaculo, mas não ligo. Agora também posso fingir orgasmo", diz, brincalhão. Assumir que o corpo não vai bem e superar a vergonha de ir ao médico é fundamental para que os homens possam viver mais e melhor.
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O médico me pediu: "Se puder, fale sobre o assunto"Leão Serva - Revista Época nº 506 de 28/01/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81365-5856-506,00.htm
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81365-5856-506,00.htm
Leão Serva
Ao saber que tinha câncer de testículo, entre outros mil sentimentos e reações, eu perguntei ao médico Omar Al-Hayek: "O que vou dizer para as pessoas que eu tive?".
- Se você puder e sentir, diga a verdade. Falar sobre o assunto tem uma função didática.
O câncer de testículo é um tabu no Brasil. É até natural: quando pequeno, há uns 40 anos, as pessoas não falavam nem mesmo os nomes das doenças mais graves. Diziam "TB", para tuberculose; "CA", para câncer. Mas em um mundo tão mudado, em que mulheres mostram como apalpar os seios, no auto-exame, em horário nobre da TV, não há como negar que o câncer de testículo padeça de um efeito machista, típico de sociedades latinas.
Eu tive muita sorte: ao morar por um tempo na Inglaterra, fomos instruídos pelo médico de família sobre cuidados gerais com a saúde. Minha mulher recebeu material sobre câncer no seio; eu, sobre câncer de testículo. Até então, já com mais de trinta anos, nunca tinha ouvido dessa doença.
- Se você puder e sentir, diga a verdade. Falar sobre o assunto tem uma função didática.
O câncer de testículo é um tabu no Brasil. É até natural: quando pequeno, há uns 40 anos, as pessoas não falavam nem mesmo os nomes das doenças mais graves. Diziam "TB", para tuberculose; "CA", para câncer. Mas em um mundo tão mudado, em que mulheres mostram como apalpar os seios, no auto-exame, em horário nobre da TV, não há como negar que o câncer de testículo padeça de um efeito machista, típico de sociedades latinas.
Eu tive muita sorte: ao morar por um tempo na Inglaterra, fomos instruídos pelo médico de família sobre cuidados gerais com a saúde. Minha mulher recebeu material sobre câncer no seio; eu, sobre câncer de testículo. Até então, já com mais de trinta anos, nunca tinha ouvido dessa doença.
Passei a fazer o auto-exame regularmente. Nem mesmo dei ouvidos ao médico que um dia, em torno dos 40 anos, me contou que eu já tinha deixado a fase de risco da doença (que atinge mais homens de até 35 anos).
Um dia, aos 44 anos, detectei uma coisa muito estranha, um testículo duro, não diria dolorido mas incômodo.
Não tenho dúvida de que o diagnóstico é facílimo, pois o urologista que me examinou levou menos de 30 segundos para dizer que devia ser câncer, que iria fazer pedir um ultrassom só para rechecar e afastar outras possibilidades, que mesmo assim achava "improvável". O médico de ultrassom, ao ver a imagem na tela, também não teve qualquer dúvida, só por cuidado ético me disse que quem diria com certeza o diagnóstico seria o urologista.
Ainda assim tive uma reação defensiva quando o urologista me ligou para dizer que era um câncer, que não tinha dúvida e que eu deveria me internar naquela mesma noite para retirar o testículo no dia seguinte.
Pedi para postergar tudo, tinha que deglutir toda a história. Ao que ele me disse: "A cirurgia é muito simples e controlada. Mas o câncer dobra de tamanho a cada semana. E faz uma semana que você o encontrou".
Não fui naquela noite, mas no dia seguinte, já resignado em perder um testículo e morrendo de medo da biópsia "a céu aberto" que é feita no outro, durante a cirurgia. Se detectado um traço de câncer, o outro também seria retirado. Eu acordaria, simplesmente, sem testículos...
Mas por sorte isso não aconteceu.
Levei quase um mês para voltar a andar normalmente. Por muito tempo ainda sentia que tinha tomado "uma bolada no saco". O abdome dói e a consciência treme: há muitos fantasmas associados ao câncer, ao câncer de testículo: a) a doença vai voltar? b) vou ficar impotente? c) vou ficar estéril? d) se a doença voltar, vou morrer? e) vou ter uma metástase? f) vou voltar a correr? g) a doença pode dar no outro testículo?
E a pior de todas as dúvidas: porque tive câncer? Foi castigo; tratei mal de minha saúde?
Para todos os fantasmas há respostas que acalmam mais os outros do que as vítimas. Mas em resumo: trata-se de uma doença muito letal no passado, que passou a ser curável por uma quimioterapia à base de prata descoberta poucas décadas atrás. Hoje só morre dessa doença quem a descobrir muito tarde. O tratamento com quimioterapia pode gerar esterilidade, mas não a impotência e certamente cura quase a totalidade dos casos de metástase. A chance de reincidência é relativamente maior dependendo do momento em que o câncer for descoberto: o americano Lance Armstrong, um dos maiores atletas da atualidade, só descobriu o seu quando já tinha metástase no pulmão e no cérebro. Mesmo assim, está vivo, saudável e ganhou 7 vezes a Volta da França, a maior prova de ciclismo do mundo. O câncer de um testículo não evolui para o outro; a possibilidade de ele contaminar outras áreas do corpo, nos casos muito graves, segue um roteiro exato: primeiro o abdome; depois o pulmão e só então o cérebro. Um médico catedrático da USP, já aposentado, me disse que em sua longa carreira nunca viu um ponto de metástase "pular" a ordem e nem soube de registros médicos dessa ocorrência.
E por que surgiu um câncer? Ninguém sabe dizer ao certo.
Em seu livro "It´s not about the bike" (não é sobre bicicleta) sobre sua luta contra o câncer, Armstrong conta uma passagem que talvez explique um possível constrangimento de um jovem como Nenê diante de um câncer de testículo. É quando sua namorada comenta com um ex que está namorando Armstrong, vítima da doença. O outro homem diz a ela que está amando um "meio homem" (Armstrong pensa em ir bater no outro, mas se conteve).
O estigma de "meia masculinidade" é uma bobagem. Basta lembrar aquela aula de ginásio em que aprendemos que todos os órgãos duplos do corpo são capazes de dar conta do serviço completo. Se um rim não funciona, o outro dá conta do recado. O mesmo vale para o pulmão, para a vista, o ouvido e, também para as funções hormonais e reprodutivas do testículo. Mesmo em um raríssimo caso de pessoa que tenha tido que retirar os dois, a reposição hormonal permite uma vida sexual normal.
O grande problema da doença no Brasil em relação aos países do chamado Primeiro Mundo é realmente a prevenção, o diagnóstico precoce. Que só vai se disseminar se os homens que tiverem a doença contarem e aconselharem. Daí porque meu médico ter pedido que eu usasse da palavra para falar as outros homens. Como também deve ter pedido o médico de Lance Armstrong (que criou uma fundação), de Luis Gushiken e de tantos outros homens em todo o mundo.
Um dia, aos 44 anos, detectei uma coisa muito estranha, um testículo duro, não diria dolorido mas incômodo.
Não tenho dúvida de que o diagnóstico é facílimo, pois o urologista que me examinou levou menos de 30 segundos para dizer que devia ser câncer, que iria fazer pedir um ultrassom só para rechecar e afastar outras possibilidades, que mesmo assim achava "improvável". O médico de ultrassom, ao ver a imagem na tela, também não teve qualquer dúvida, só por cuidado ético me disse que quem diria com certeza o diagnóstico seria o urologista.
Ainda assim tive uma reação defensiva quando o urologista me ligou para dizer que era um câncer, que não tinha dúvida e que eu deveria me internar naquela mesma noite para retirar o testículo no dia seguinte.
Pedi para postergar tudo, tinha que deglutir toda a história. Ao que ele me disse: "A cirurgia é muito simples e controlada. Mas o câncer dobra de tamanho a cada semana. E faz uma semana que você o encontrou".
Não fui naquela noite, mas no dia seguinte, já resignado em perder um testículo e morrendo de medo da biópsia "a céu aberto" que é feita no outro, durante a cirurgia. Se detectado um traço de câncer, o outro também seria retirado. Eu acordaria, simplesmente, sem testículos...
Mas por sorte isso não aconteceu.
Levei quase um mês para voltar a andar normalmente. Por muito tempo ainda sentia que tinha tomado "uma bolada no saco". O abdome dói e a consciência treme: há muitos fantasmas associados ao câncer, ao câncer de testículo: a) a doença vai voltar? b) vou ficar impotente? c) vou ficar estéril? d) se a doença voltar, vou morrer? e) vou ter uma metástase? f) vou voltar a correr? g) a doença pode dar no outro testículo?
E a pior de todas as dúvidas: porque tive câncer? Foi castigo; tratei mal de minha saúde?
Para todos os fantasmas há respostas que acalmam mais os outros do que as vítimas. Mas em resumo: trata-se de uma doença muito letal no passado, que passou a ser curável por uma quimioterapia à base de prata descoberta poucas décadas atrás. Hoje só morre dessa doença quem a descobrir muito tarde. O tratamento com quimioterapia pode gerar esterilidade, mas não a impotência e certamente cura quase a totalidade dos casos de metástase. A chance de reincidência é relativamente maior dependendo do momento em que o câncer for descoberto: o americano Lance Armstrong, um dos maiores atletas da atualidade, só descobriu o seu quando já tinha metástase no pulmão e no cérebro. Mesmo assim, está vivo, saudável e ganhou 7 vezes a Volta da França, a maior prova de ciclismo do mundo. O câncer de um testículo não evolui para o outro; a possibilidade de ele contaminar outras áreas do corpo, nos casos muito graves, segue um roteiro exato: primeiro o abdome; depois o pulmão e só então o cérebro. Um médico catedrático da USP, já aposentado, me disse que em sua longa carreira nunca viu um ponto de metástase "pular" a ordem e nem soube de registros médicos dessa ocorrência.
E por que surgiu um câncer? Ninguém sabe dizer ao certo.
Em seu livro "It´s not about the bike" (não é sobre bicicleta) sobre sua luta contra o câncer, Armstrong conta uma passagem que talvez explique um possível constrangimento de um jovem como Nenê diante de um câncer de testículo. É quando sua namorada comenta com um ex que está namorando Armstrong, vítima da doença. O outro homem diz a ela que está amando um "meio homem" (Armstrong pensa em ir bater no outro, mas se conteve).
O estigma de "meia masculinidade" é uma bobagem. Basta lembrar aquela aula de ginásio em que aprendemos que todos os órgãos duplos do corpo são capazes de dar conta do serviço completo. Se um rim não funciona, o outro dá conta do recado. O mesmo vale para o pulmão, para a vista, o ouvido e, também para as funções hormonais e reprodutivas do testículo. Mesmo em um raríssimo caso de pessoa que tenha tido que retirar os dois, a reposição hormonal permite uma vida sexual normal.
O grande problema da doença no Brasil em relação aos países do chamado Primeiro Mundo é realmente a prevenção, o diagnóstico precoce. Que só vai se disseminar se os homens que tiverem a doença contarem e aconselharem. Daí porque meu médico ter pedido que eu usasse da palavra para falar as outros homens. Como também deve ter pedido o médico de Lance Armstrong (que criou uma fundação), de Luis Gushiken e de tantos outros homens em todo o mundo.
A prevenção sempre é o melhor caminho. Precisamos acabar com o medo e o preconceito. Um abraço. Drauzio Milagres.
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