José Luís Fiori - Le Monde Diplomatique - LMD Brasil - 05/02/2009
http://diplo.uol.com.br/2009-02,a2778
"Quando o sagrado torna-se profano. Onde a guerra é travada pela paz. Os judeus consideram-se um só povo e uma só religião que nasce da revelação divina direta. O povo escolhido macula as próprias leis bíblicas numa disputa desigual pela conquista da Terra Santa".
"Se o Hamas quer acabar com Israel, Israel tem que acabar com o Hamas antes". Efraim, 23 anos, estudante de uma escola religiosa de Jerusalém, FSP 24/01/2009".
Durante vinte um dias de bombardeio contínuo, Israel lançou 2.500 bombas sobre a Faixa de Gaza - um território de 380 km2 e 1.500 milhão de habitantes. Deixou 1.300 palestinos mortos e 5.500 feridos e 15 israelenses mortos.
A infra-estrutura do território foi destruída completamente, junto com milhares de casas e centenas de construções civis. E é provável que Israel tenha utilizado bombas de "fósforo branco" - proibidas pela legislação internacional - com conseqüências imprevisíveis, no longo prazo, sobre a população civil, em particular a população infantil. Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, declarou estar "horrorizado", depois de visitar o território bombardeado e considerou "escandalosos e inaceitáveis" os ataques israelitas contra escolas e refúgios mantidos em Gaza, pelas Nações Unidas. Richard Falk, relator especial da ONU sobre a situação dos Direitos Humanos em Gaza, também declarou que, "depois de 18 meses de bloqueio ilegal de alimentos, remédios e combustível, Israel cometeu crimes de guerra e contra a humanidade na sua última ofensiva contra os territórios palestinos. Crimes ainda mais graves, porque 70% da população de Gaza tem menos de 18 anos".
Dentro de Israel, entretanto - com raras exceções - a população apoiou a operação militar do governo. Mais do que isso, as pesquisas de opinião constataram que o apoio da população foi aumentando na medida em que avançavam os bombardeios - chegando a índices de 90%. E no final, na hora do cessar-fogo, metade era favorável à continuação da ofensiva, até a reocupação de Gaza e a destruição do Hamas. (FSP, 24/01/09).
Seja como for, duas coisas chamam a atenção - de forma especial - nesta última guerra: a inclemência de Israel e sua indiferença com relação às leis e às críticas da comunidade internacional. Duas posições tradicionais da política externa israelita, que têm se radicalizado cada vez mais e são quase sempre explicadas pela "escalada aos extremos" do próprio conflito. Mas existe um aspecto desta história que quase não se menciona, ou então é colocado num segundo plano, como se as "visões sagradas" do mundo e da história fossem uma característica exclusiva dos países islâmicos.
Desde sua criação, em 1948, Israel mantém-se sem uma constituição escrita, mas possui um sistema político com partidos competitivos e eleições periódicas, tem um sistema de governo parlamentarista segundo o modelo britânico, e conserva um poder judiciário autônomo. Mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, Israel é um estado religioso, e grande parte de sua população e governantes tem uma visão teológica do seu passado e do seu lugar dentro da história da humanidade.
Israel não tem uma religião oficial, mas é o único estado judeu do mundo. Os judeus consideram-se um só povo e uma só religião que nasce da revelação divina direta, e não depende de uma decisão, ou de uma conversão individual. "Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis uma propriedade peculiar entre todos os povos. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa" [1].
Além disto, o judaísmo estabelece normas e regras específicas e inquestionáveis que definem a vida cotidiana e comunitária do seu povo, que deve se manter fiel e seguir de forma incondicional as palavras do seu Deus, mantendo-se puros, isolados e distantes com relação aos demais povos e religiões. "Não seguireis os estatutos das nações que eu expulso de diante de vós. Eu Javé, vosso Deus, vos separei desses povos. Fareis distinção entre o animal puro e o impuro. Não vos torneis vós mesmos imundos como animais, aves e tudo o que rasteja sobre a terra" [2].
Para os judeus, Israel é a continuação direta da história deste "povo escolhido", e por isso, a sua verdadeira legislação ou constituição são os próprios ensinamentos bíblicos. O Torá conta a história do povo judeu e é a lei divina, dessa forma não pode haver lei ou norma humana que seja superior ao que está dito e determinado nos textos bíblicos, onde também estão definidos os princípios que devem reger as relações de Israel com seus vizinhos e/ou com seus adversários. Em Israel não existe casamento civil, só a cerimônia rabínica, e os soldados israelenses prestam juramento com a Bíblia sobre o peito e com a arma na mão. "Javé ferirá todos os povos que combateram contra Jerusalém: ele fará apodrecer sua carne, enquanto estão ainda de pé, os seus olhos apodrecerão em suas órbitas, e a sua língua apodrecerá em sua boca" [3].
As idéias religiosas dos povos não são responsáveis nem explicam necessariamente as instituições de um país e as decisões dos seus governantes. Mas neste caso, pelo menos, parece existir um fosso quase intransponível entre os princípios, instituições e objetivos da filosofia política democrática das cidades gregas e os preceitos da filosofia religiosa monoteísta que nasceu nos desertos da Ásia Menor.
Mas o que talvez seja mais importante do ponto de vista imediato do conflito entre judeus e palestinos, e do próprio sistema mundial, é que Israel - ao contrário dos palestinos - junto com sua visão sagrada de si mesmo, dispõe de armas atômicas e de acesso quase ilimitado a recursos financeiros e militares externos. Com essas idéias e condições econômicas e militares, Israel seria considerado - normalmente - um estado perigoso e desestabilizador do sistema internacional, pela régua liberal-democrática dos países anglo-saxônicos.
Mas isto não acontece porque no mundo dos mortais, de fato, Israel foi uma criação e segue sendo um protetorado anglo-saxônico, que opera desde 1948, como instrumento ativo de defesa dos interesses estratégicos anglo-americanos no Oriente Médio. Os anglo-americanos operam como a âncora passiva do "autismo internacional" e da "inclemência sagrada" de Israel.
[ 1 - http://diplo.uol.com.br/2009-02,a2778#nh1 - ] Êxodo, 19, 5-6
[ 2 - http://diplo.uol.com.br/2009-02,a2778#nh2 - ] Levítico, 20, 23-25
[ 3 - http://diplo.uol.com.br/2009-02,a2778#nh3 - ] Zacarias, 14, 12-15