Contribuição de José Romeiro
O improvável encontro da esperança com a realidade
Washington Araújo - Adital - 23/02/2010
http://www.adital.com.br/
Washington Araújo
Washington Araújo - Adital - 23/02/2010
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Washington Araújo
A cultura do big Mac - aquele sanduíche carro-chefe da franquia Mcdonalds - começa a produzir seus frutos mais nefastos e perniciosos para esta e as próximas gerações. É a cultura do transitório e do efêmero onde nada dura nem perdura, nada progride, mantém-se... e só. O marketing coloca o supérfluo sob lente de aumento e a felicidade é poder estar dentro da moda, moda-vagalume com cada vez menos tempo de vida, sendo sempre substituída por outro artificialismo como a se enraizar no espaço entre as nuvens. É claro que temos um estilo de vida moderno que mostra ser cada vez mais insustentável, seja no aspecto moral seja no material, apenas estilo de vida descartável onde colocamos em sua voraz fornalha o que temos de mais precioso - nosso tempo.
Cansado de viajar em fim de semana para dar palestra, participar de evento universitário, fazer seminário sobre mídia e direitos humanos, viagem que em geral começa na noite de sexta-feira e acaba logo após o meio-dia do domingo, não é que terminei sucumbindo à idéia de comprar aquela maquininha criada pela Amazon.com e que atende pelo nome Kindle?
É que viajando 2/3 da bagagem é formada por livros. Livros que me oferecem a possibilidade de acompanhá-los. Pois bem, a maquininha cumpre parte do que alardeia: armazena mais de 1.500 livros digitalizados e sua bateria dura exatas duas semanas. Mas, como já intuía, não cumpre exatamente aquilo que mais apregoa: a possibilidade de usá-la como se estivesse com um livro entre as mãos.
Cara de jornal molhado
Com sua cara de jornal molhado as páginas, com as letras serifadas pretas sobre fundo cinza nem de longe essa "tela" lembra página de livro. Num primeiro momento satisfaz como depósito de quinze centenas de livros logo aqui, bem ao alcance das mãos. Num segundo momento sinto a estranheza ao já familiar toque humano tão longamente acostumado ao papel celulose e flexível. Olho o Kindle como embalagem de plástico e o livro como presença afetiva. Por mais que avance na leitura do texto meus olhos não mensuram de imediato o texto percorrido. O kindle parece imutável como aqueles gigantescos moais da ilha de Páscoa. E se antes fazia breves pausas para sentir mais fundamente a emoção suscitada pelo poema ou a situação evocada na crônica de autor talentoso deixando o livro escorregar sobre o peito, aberto até onde a leitura conseguira ir, o que fazer com o kindle com sua forma de tabuleta que nunca se abre? Ah e o cheiro de livro? Não, não é desprezível o cheiro de livro bem impresso e bem encadernado, o olfato festeja a obra assim como os olhos festejam as palavras.
Se antes imaginava o futuro do livro como aquele objeto que tornaria possível lê-lo durante o banho, vejo que nenhum leitor digital é afeito ao contato com água. Neste aspecto são gremlins onde gotas d'água podem ser fatais. O quesito quantidade é bem atendido e não resta dúvida alguma. Mas o quesito qualidade como pressentia perde por nocaute. Grande parte dos livros digitalizados, ao menos neste ano de 2010, existe apenas em língua inglesa. Em português tive que me contentar com o indispensável Machado de Assis, alguns livros de Eça de Queiróz, Fernando Pessoa e outros de Humberto de Campos. Estão digitalizados porque já são de domínio público e ninguém há para reclamar o pagamento de direitos autorais.
Apenas por isto. Mas, para que me serve o kindle se não posso depositar sob seus cuidados o Declínio e Queda do Império Romano de Edward Gibbon, A História da Civilização de Will Durant, Armas, Germes e Aço de Jared Diamond; Cadeira de balanço de Carlos Drummond de Andrade, A descoberta do mundo com crônicas de Clarice Lispector, O Apanhador no Campo de Centeio de Jerome David Salinger e Cem Anos de Solidão de Garcia Marquez?
A segurança de ter ao alcance dos olhos - e depois das mãos - o registro daqueles momentos mágicos em que o gênio criador irrompeu nas vidas de Goethe e Machado, Pessoa e Heine, Schiller e Salinger e delas fez surgir companheiros de viagem que desafiam o tempo, a memória e os modismos também é o grande atrativo do kindle. Segurança que vez por outra sucumbe ao efêmero, ao que é feito para não durar e se apresenta tão volátil quanto o capital que a financia e o trabalho que a gera. Sim, há muito deixamos de ser habitantes de catedrais da Idade Média para sermos meros transeuntes de shoppings centers feéricos, onde não deixamos de discernir a passagem do tempo, quando é dia e quando é noite e ainda assim alimentamos a ilusão de que estamos protegidos contra a realidade da vida. E quando ficamos insensíveis à passagem do tempo ficamos imunes à memória e sem memória pouco ou quase nada somos enquanto realidades humanas. Tudo envelhece muito depressa porque há que se alimentar a fornalha do consumo inconseqüente.
Trabalhadores como desempregados potenciais
Vivemos em uma paralisia de poder, anestesiados, precocemente envelhecidos pela idéia que o amanhã é apenas outro nome para hoje. Prisioneiros do dinheiro, viramos reféns de um processo de globalização que nos faz reféns do medo. A miséria foi globalizada e sabemos muito bem o que é um pobre nas palafitas de Salvador, na Bahia de Todos os Santos e outro pobre vivendo nas cercanias de Nova Déli, cidade hiperpovoada onde pedir esmola é crime punido com detenção em regime fechado. O mundo tornou-se tão terrivelmente desigual em suas oportunidades e tão igualitário em suas formas de opressão. O dinheiro que antes circulava fisicamente hoje circula virtualmente. É, por sua natureza, apátrida e como tal não guarda relações de lealdade com os condenados da Terra. Sem vínculo algum com o trabalhador, o capital globalizado vê um desempregado potencial em cada rosto de trabalhador. E não poderia ser diferente já que tratamos aqui da ótica do predador. Primeiro avalia-se a força física, depois psicológica, depois financeira, depois midiática. Até asfixiá-lo.
Jared Diamond argumenta que muitos dos colapsos de civilizações antigas foram os resultados de suicídios ecológicos. O autor de Colapso estabelece assim o paralelo com as sociedades atuais, onde os problemas ambientais são também uma grave ameaça. No entanto, Diamond reconhece que o colapso de uma sociedade ou civilização é quase sempre o resultado da combinação de diversos fatores. Para além da destruição do meio ambiente, ele atribui um papel às alterações climáticas, às relações comerciais com outros países, à existência ou não de povos vizinhos hostis, e, acima de tudo, à capacidade das sociedades adaptarem o seu modo de vida aos recursos naturais disponíveis.
Diamond dá-nos também exemplos de sociedades que, tendo enfrentado problemas semelhantes aos descritos acima, conseguiram, pelas escolhas que fizeram, ultrapassá-los e subsistir até hoje. A Islândia e a ilha de Tikopia mostram como é possível subsistir, mesmo em condições muito adversas, quando as sociedades fazem, em cada momento, as escolhas certas. O meio ambiente da Islândia é um dos mais frágeis do mundo, o que não impediu a sua população de ter um dos rendimentos per capita mais elevados do mundo. A ilha de Tikopia mantém uma população constante de 25 000 habitantes há mais de 2500 anos. Os seus habitantes rapidamente se aperceberam que o frágil meio ambiente da sua ilha não suportava uma população superior. Assim, para além de terem eliminado hábitos antigos, como a criação de porcos, animais que destruíam a frágil vegetação da ilha, utilizaram o aborto e mesmo o infanticídio como formas de controlo da população. Uma ideia fundamental do livro de Diamond é a da necessidade de ajustarmos o nosso modo de vida, produção e hábitos de consumo aos recursos naturais que temos à nossa disposição, dependendo disso a sobrevivência das sociedades atuais.
Quando a droga é a própria vida que se leva
Enquanto isso o desespero humano atinge proporções inauditas. Para alcançar o desespero humano mais completo e mais sofrido leva-se tempo. Combate-se o uso de drogas, essa válvula de escape de crescente legião de desiludidos, sem se dar conta que para a maior parte dos usuários a droga real e intransferível é a própria vida que levam, sem sentido e sem rumo como pequenos barcos de papel lançados em alto mar. E se as taxas de suicídios só fazem crescer nas antes festejadas maiores economias do planeta - como Suíça, Japão e os Estados Unidos - já deveriam ser vistas como tenebrosos alertas de que algo de muito podre vem sustentando o presente estágio de pré-barbárie em que vivemos, um tempo da História onde os recursos naturais continuam sendo saqueados, inutilizados e desperdiçados em benefício de uma cruel elite de senhores feudais que aprenderam a criar a sede e o sono, mas não arriscaram soluções para criar a água e o descanso.
A busca desenfreada pelo cintilar fugaz dos holofotes torna defeituosas gerações de jovens que parecem abdicar em massa de sua condição humana para a condição de produtos expostos em gôndolas de mercados espalhadas ao longo da vida. A certidão de nascimento deixa de ser emitida pelos prosaicos cartórios para virem a existência no momento mesmo em que viram personagens de realities-shows, de pegadinhas sórdidas, de capas de revistas e jornais. Estamos transitando do estágio de nascer para o de estrear.
Se nossos antepassados sofreram horrores inimagináveis que somente uma Idade Média poderia suscitar, nós hoje, seus descendentes, vivemos na ante-sala da Idade Mídia onde tudo se transforma em alucinantes jogos de luzes. A Idade Mídia tem seus cânones. Tudo o que não repercute não é digno da atividade humana de pensar. Tudo o que não entra na escalada de notícias de telejornais não possui existência própria nem autônoma. Tudo o que sinaliza para uma ética dos direitos humanos constitui atentado aos poderes midiáticos constituídos. O planeta inteiro começa a passar em cada vez maiores telas de tevê, lugar mágico onde as "coisas" podem ser vistas, mas não podem ser "tocadas". Mais uma vez incita-se o desejo, mas não os meios de satisfazê-lo.
É um tempo em que toda aspiração que vise elevar a qualidade da vida humana é rotulada como atentado direto ao principio da liberdade individual, pois todo ser humano tem o direito à sua própria infelicidade sem interferência de qualquer poder e não importando em que faixa etária se encontre. Toda pessoa baixa é criança - e, portanto incapaz de autodeterminação - não importa se é filha de anões ou se descende longinquamente de pais de estatura física historicamente baixa. Os tais valores humanos estão com sinais tão trocados que o novelista global Manoel Carlos (de Viver a Vida) vem sendo comparado com William Shakespeare (de Hamlet) e se acha muito natural que criança com meros de 8 anos de idade possa interpretar vilã-mirim em novela das 8 da emissora campeã de audiência no Brasil, sendo então execrável que alguém se atreva a dizer que o "caso" requer imputar responsabilidades a quem de direito: os pais ou responsáveis da criança, a emissora de televisão que lhe facilita o roubo da infância, as varas de família e juizados de menores que deveriam zelar por seu desenvolvimento físico, moral, social.
Terminamos confinados à insônia originária de diversos fatores, dentre os quais destaco a ansiedade irreprimível por comprar e a angústia de não ter como pagar. A insônia nunca foi boa para ninguém salvo os donos de laboratórios farmacêuticos. Não é à toa que os Estados Unidos consomem 53% de todos os sedativos, ansiolíticos e outros medicamentos vendidos de forma legal em todo o mundo e quase 50% das drogas proibidas vendidas ilegalmente no mundo. O patético da história que a nação do Norte conserva em suas fronteiras geográficas não mais que 5% de toda a população mundial.
Do jeito que as coisas vão não haverá o dia em que a esperança venha se encontrar com a realidade.
Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil, Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org - Email - wlaraujo9@gmail.com
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