A Favor da Vida e da Morte
Adriano Silva - Revista Época nº 515 de 31/03/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG82667-5855,00-A+FAVOR+DA+VIDA+E+DA+MORTE.html
Eu torcia para que meu avô morresse.
Não por desamor, mas porque o amava.
Adriano Silva
O meu avô era um homem forte, troncudo, de físico talhado pela lida braçal. Ele sofreu o primeiro acidente vascular cerebral logo depois de completar 80 anos. Os exames mostravam uma mancha escura no cérebro – a área danificada pelo coágulo. O minúsculo nó de sangue talvez estivesse errando dentro dele havia anos.
Assim como um outro pode estar viajando neste exato instante dentro de mim. Ou de você. Meu avô perdeu ali os movimentos de uma perna. Passou a se arrastar num andador. No ano seguinte, mais quatro derrames. Um dia, ao visitá-lo, me coube fazer a sua barba, que ele não podia mais raspar. Era uma honra ter aquele momento de intimidade com ele. O velho me olhou nos olhos e chorou. Grato, humilhado, com raiva, com pena de si. Nunca vou saber.
Os derrames foram lhe tirando tudo. A fala. Ele se irritava em balbuciar e não ser compreendido. O controle dos esfíncteres. Passou a ter de usar fraldas. Até que o último acidente lhe tirou a vida. Meu avô não morreu. Mas perdeu a vida. Não conseguia mais se mexer. Um homem trancafiado dentro de um corpo falido, sem reação. Suas expressões faciais viraram esgares. Os sons que emitia eram arrancos guturais. Sua posição na cama era trocada à sua revelia, para evitar escaras. Uma sonda alimentar foi introduzida pelo nariz em seu estômago. Com o tempo ela passou a esfolar sua garganta, sua narina. Os movimentos de deglutição se tornaram impossíveis e ele se afogava com a própria saliva. Uma sonda urinária foi implantada. Seus pulmões começaram a acumular líquido. Como resultado, supliciantes sessões de asfixia e expectoração. Seus músculos atrofiaram. O homem possante que eu conhecera virou uma criatura descarnada, ossos pontudos sob a pele fina.
Com o tempo, meu avô parou de dormir. Eu tinha certeza de que a vigília era o pior castigo para ele: ficar acordado, sozinho dentro de si, em meio àquele inferno. Torcia para que ele não estivesse lúcido, para que alucinasse e voasse dali. Queria sedá-lo, para afastar sua mente daquela tortura. Ele às vezes urrava. Às vezes passava horas gemendo. Ninguém sabia por quê. É provável que fossem cãibras lancinantes. Ele tinha perdido a capacidade de se comunicar. Eu torcia para que ele morresse. Não porque nutrisse algum desamor. Mas porque o amava demais para admitir aquele sofrimento. A morte seria uma bênção.
Uma das últimas mensagens do velho que julgo ter compreendido veio na forma de um ronco fundo. Eu segurava sua mão e ele como que apertou meu dedo. Creio ter ouvido, enquanto era perfurado pelo seu olhar: "Não agüento mais". Ele agonizou por mais um ano. Numa existência tão precária, tão indigna, tão dolorosa, que não creio que possa ser qualificada de vida. Se ele realmente me fez um pedido, espero que tenha me perdoado por eu não ter tido a coragem de atendê-lo.
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