Como vivem os habitantes da Islândia, considerado o país mais feliz do mundo.
The Observer - A maior taxa de natalidade da Europa + o maior índice de divórcios + a maior porcentagem de mulheres que trabalham fora de casa = o melhor país do mundo para se viver. Deve haver algo errado nessa equação. Coloque esses três fatores juntos - montes de crianças, lares desfeitos, mães ausentes - e você certamente terá uma receita de miséria e caos social.
Mas não. A Islândia, o bloco de lava subártico a que se aplicam essas estatísticas, encabeça a última classificação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o que significa que como sociedade e como economia - em termos de riqueza, saúde e educação - é a campeã do mundo. Ao que se poderia retrucar: sim, mas com invernos tão escuros, e longe dos verões tropicais, os islandeses são felizes? De fato, até onde se podem medir confiavelmente essas coisas, eles são. Segundo um estudo acadêmico aparentemente sério divulgado pelo Guardian, os islandeses são a população mais feliz da Terra. (O estudo ganhou certa credibilidade porque concluiu que os russos eram a mais infeliz).
Oddny Sturludottir, 31 anos, com dois filhos, contou-me que uma grande amiga dela, de 25 anos, tem três filhos com um homem que acabou de deixá-la. "Mas ela não tem a menor sensação de crise", disse Oddny. "Está se preparando para tocar sua vida e sua carreira com uma mentalidade totalmente otimista". A amiga não vê crise onde qualquer mulher em situação semelhante, em qualquer outro lugar do mundo ocidental, consideraria uma completa catástrofe.
Existem muitos outros fatores mais evidentes - e não se trata aqui do fato de a cantora pop Björk ter nascido lá. As estatísticas favoráveis abundam. É o país com o sexto PIB per capita do mundo. É onde as pessoas compram mais livros, onde a expectativa de vida dos homens é a mais alta do planeta, não muito atrás da feminina. É o único país da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) que não tem forças armadas (elas foram banidas 700 anos atrás). Lá está a maior porcentagem de telefones celulares por habitante, o sistema bancário em mais rápida expansão, negócios de exportação disparados, ar cristalino e água quente distribuída para todas as residências do país diretamente das entranhas vulcânicas da terra. Mas essa felicidade jamais seria possível sem a resoluta autoconfiança que define os islandeses como indivíduos o que por sua vez deriva de uma sociedade que é culturalmente dirigida para a criação de filhos felizes e saudáveis, por qualquer número de pais e mães. Muito disso vem de seus ancestrais vikings, cujos homens eram saqueadores e violadores contumazes, mas ao menos tinham a coerência moral de não sentir ciúme das escapadas de suas esposas, mulheres duras que mantinham suas famílias alimentadas na aridez da semitundra dessa ilha do Atlântico. Como explicou uma avó que conheci em minha primeira visita à Islândia, dois anos atrás: "Os vikings iam embora e as mulheres dominavam a situação e tinham filhos com seus escravos, e quando os vikings voltavam aceitavam tudo no espírito do quanto mais gente, mais animado".
Oddny, uma pianista esguia e atraente que fala alemão fluentemente, traduz livros do inglês para o islandês e é vereadora na capital Reykjavik, é uma amostra contemporânea disso. Cinco anos atrás, quando estudava em Stuttgart, ela engravidou de um alemão. Durante a gravidez, terminou o namoro e voltou com um antigo ex, prolífico escritor e pintor islandês chamado Hallgrimur Helgason. Os dois voltaram para a Islândia, onde viveram juntos com o bebê e depois de algum tempo tiveram outro filho. Hallgrimur é dedicado às duas crianças, mas Oddny considera importante que sua primeira filha mantenha uma ligação estreita com o pai biológico. Isso acontece regularmente. O alemão vai à Islândia e se hospeda na pequena casa de Oddny e Hallgrimur durante uma semana, às vezes duas.
O caso de Oddny não era raro. Quando se aproxima o aniversário de uma criança, não apenas os vários conjuntos de pais se reúnem para a festa, mas também os vários conjuntos de avós, sem falar em tios e tias. A Islândia, isolada no meio do Atlântico Norte e tendo a Groenlândia como vizinha mais próxima, era distante demais para os missionários cristãos medievais, a não ser os mais obstinados. É um país principalmente pagão, como os nativos gostam de dizer, sem o peso de tabus que causam tanta perturbação em outros lugares. Isso significa que são pessoas práticas, o que, por sua vez, significa muitos divórcios.
Os islandeses são o povo menos "encucado" do mundo. Daí que, por exemplo, não existe incentivo para "ficar juntos pelo bem das crianças". As crianças ficarão bem, porque a família vai se reunir em torno delas e provavelmente os pais continuarão tendo um relacionamento civilizado, com base na compreensão geralmente automática de que a custódia dos filhos será compartilhada.
O conforto de saber que, aconteça o que acontecer, o futuro das crianças está assegurado também serve para explicar por que as islandesas, tão modernas (a Islândia elegeu a primeira mulher presidente do mundo, Vigdis Finnbogadottir, uma mãe solteira, 28 anos atrás), persistem no antigo hábito de ter filhos muito jovens. "Não são gravidezes indesejadas de adolescentes, você entende", diz Oddny, "mas mulheres de 21, 22 anos que desejam ter filhos, muitas vezes quando ainda estão na universidade".
Em uma universidade britânica, uma estudante grávida seria uma raridade. Na Islândia, mesmo na Universidade de Reykjavik, voltada para economia e administração, não apenas é comum ver garotas grávidas na lanchonete, como também vê-las amamentando. Ainda mais porque, se você estiver empregado, o Estado lhe dará nove meses de licença-maternidade totalmente paga, para ser dividida entre a mãe e o pai como eles quiserem. "Isso significa que os empregadores sabem que um homem que eles contratam tem a mesma probabilidade que uma mulher de tirar licença para cuidar de um bebê", explicou Svafa Grbnfeldt, atual reitora da Universidade de Reykjavik, que já foi uma poderosa executiva. "A licença-paternidade foi o que fez a diferença para a igualdade das mulheres neste país".
Svafa abraçou a oportunidade com os dois braços. Para seu primeiro filho, ela usou a maior parte da licença-maternidade. Para o segundo, foi seu marido. "Eu tinha um emprego no qual viajava 300 dias por ano" conta. Svafa diz que sentiu certo remorso, aliviado em parte por saber que seu marido estava em casa e em parte por causa da educação de alto nível oferecida pelo Estado, a começar por creches de dia inteiro, que torna praticamente inexistentes as escolas particulares.
O emprego em que ela viajava 300 dias era de vice-presidente encarregada de fusões e aquisições de uma companhia farmacêutica genérica chamada Actavis, na qual trabalhou durante seis anos. Nesse período a companhia saiu da insignificância global para se tornar a terceira maior de seu gênero no mundo, comprando 23 companhias estrangeiras no caminho.
Uma propagandista não apenas de sua antiga firma, que ela deixou quando não pôde mais dominar a culpa que sentia por sua ausência como mãe, Svafa enumerou alguns dos fatos mais notáveis da proeza empresarial que seu país conquistou nos últimos dez anos, época de grande sucesso para uma economia tradicionalmente baseada na pesca. Os bancos islandeses hoje operam em 20 países, e a empresa deCODE, sediada em Reykjavik, é uma líder mundial na pesquisa biotecnológica do genoma. As firmas islandesas estão engolindo empresas de alimentos e de telecomunicações na Grã-Bretanha, Escandinávia e Leste Europeu, outras evidências do crescimento econômico.
Svafa é uma mulher animada e franca, com um corte de cabelo arrojado e uma mente aguda e bem-humorada. E tem um escritório em casa que combina. Espaçoso, minimalista (a tal ponto que não tem uma escrivaninha) e moderno no estilo clean nórdico, parece sala de estar e tem uma vista espetacular. De uma janela você vê os telhados vermelhos e verdes de Reykjavik até o porto e o mar azul-escuro. De outra, vê-se uma serra baixa, coberta de neve. É uma paisagem linda de se ver, mas difícil para viver, especialmente nos mil anos em que a Islândia foi habitada antes da invenção da eletricidade e do motor a combustão. "Você tem de ser não apenas corajoso, mas criativo para sobreviver aqui", disse Svafa. "Se não usar a imaginação, está acabado; se ficar parado, você morre".
Como os vikings demonstraram, parte dessa imaginação significa sair pelo mundo afora. Mas agora que a Islândia prosperou, há um convite para que o mundo venha. A Universidade de Reykjavik tem professores de 23 países e pretende, depois da mudança planejada, dentro de dois anos, expandir a presença estrangeira, tanto em termos de professores como de estudantes, e transformar a universidade em um pólo global de educação em economia. A universidade já é totalmente bilíngüe. "Nosso negócio é ganhar cérebros, e não perdê-los. Queremos fazer o que os americanos fizeram muito bem. Em nosso caso, criar um campus de elite na Europa que atraia os melhores do mundo", afirma Svafa.
Os islandeses sabem identificar os melhores e incorporá-los a sua sociedade. Conversei sobre isso com o primeiro-ministro, Geir Haarde, que encontrei em um evento oficial em um banho público cheio de vapor, um local de encontro popular para os habitantes do país. Tranqüilo como todo mundo que conheci, e sem nada que parecesse um guarda-costas nas redondezas (quase não há criminalidade na Islândia), ele concordou imediatamente em dar uma rápida entrevista.
"Acredito que combinamos o melhor da Europa e dos EUA aqui: o sistema de previdência social nórdico com o espírito empresarial americano", ele disse, indicando que a Islândia, diferentemente de outros países nórdicos, tem impostos pessoais e corporativos extremamente baixos. "Isso significou que não apenas as empresas islandesas ficaram e estrangeiras vieram, como aumentamos em 20% nossa receita fiscal, devido ao maior movimento do comércio".
Isso não quer dizer que a Islândia ficou imune ao pânico financeiro que afeta atualmente o resto do mundo. Os bancos locais, à maneira americana, são atores globais agressivos e otimistas, e há preocupações de que eles tenham exagerado. O aumento dos preços dos alimentos e do petróleo está gerando o mesmo tipo de manchete nos jornais islandeses que vemos em qualquer outro lugar. Mas não há sugestão de que o sistema econômico esteja ameaçado. Os islandeses vão continuar recebendo gratuitamente não apenas educação de alta classe como tratamentos de saúde de alta classe. A medicina privada na Islândia limita-se principalmente a procedimentos de luxo como cirurgia plástica.
Dagur Eggertsson, até recentemente o prefeito de Reykjavik e provável futuro primeiro-ministro da Islândia, explicou-me que o que aconteceu na Islândia desafiou a lógica econômica. "Nos anos 1980 e 90, a direita nos EUA e no Reino Unido dizia que o sistema escandinavo era impraticável, que o alto investimento estatal em serviços públicos mataria as empresas", disse Dagur, 35 anos, um homem jovial e superinteligente que, como a maioria dos islandeses, trabalha muito em diversas frentes - além de político ele é médico. "Mas aqui estamos, em 2008", continua, "e você vê que nesses últimos 12 anos nós e os países escandinavos disparamos. Alguém chamou isso de economia de abelha: cientificamente, do ponto de vista aerodinâmico, você não consegue entender como ela voa, mas voa, e muito bem".
O sucesso espetacular da Islândia vem da capacidade para o trabalho duro que Dagur exemplifica, além do imperativo de criatividade de que Svafa falou, mais uma fé americana na exeqüibilidade de grandes idéias. "Muitos de nós vivemos nos Estados Unidos, estudamos lá", disse Geir Haarde, "e o que nós tiramos deles e, ao mesmo tempo, descobrimos que temos em comum é essa atitude de que se você trabalhar duro qualquer coisa pode dar certo".
Espírito semelhante está por trás do sucesso da Reykjavik Energy, a companhia que fornece a maior parte da água quente e da eletricidade aos islandeses. A tubulação penetra profundamente na crosta terrestre gelada para extrair não petróleo, mas água, que a 1 quilômetro de profundidade atinge temperaturas de 200°C. Em 1940, 85% da energia do país vinha do carvão e do petróleo. Hoje, 85% vem da água vulcânica subterrânea, que fornece a metade da eletricidade necessária por cerca de dois terços do preço médio europeu. A Islândia tem o maior sistema de aquecimento geotérmico do mundo, e o planeta está interessado na tecnologia. A Reykjavik Energy está envolvida em projetos conjuntos para copiar o modelo islandês em lugares como Djibuti, El Salvador, Indonésia e China.
Há uma besta com a qual a Islândia tem dívida: a Segunda Guerra Mundial. Antes da guerra, era o país mais pobre da Europa. De repente, em 1939, tornou-se uma localização estratégica de imenso valor. Os britânicos e os alemães a disputaram e os britânicos chegaram primeiro. Estabeleceram uma base militar em uma península perto de Reykjavik. "De repente havia uma abundância de empregos que pela primeira vez não se relacionavam à pesca ou à agricultura", lembra Asvaldur Andresson. "Antes da guerra, nós quase não tínhamos estradas, e as que havia tivemos de construir com picaretas e pás. Os britânicos e os americanos vieram e com eles as escavadeiras, estradas asfaltadas e todo tipo de ferramentas maravilhosas para se trabalhar".
Asvaldur, nascido em 1928 em uma cidade pesqueira no extremo leste da Islândia chamada Seydisfjordur, emigrou para Reykjavik no final da guerra e encontrou trabalho como motorista de ônibus na base americana. Depois disso, com longas horas de estudo à noite, passou a maior parte da carreira como fornecedor de peças para carros.
Sua vida sempre foi dura, mas especialmente na infância, quando a Islândia era a pior das combinações possíveis: um país em desenvolvimento com clima terrivelmente frio. Ele parou de estudar aos 12 anos e foi trabalhar em um barco de pesca em meio às tempestades geladas da borda meridional do Círculo Polar Ártico. Sua irmã morreu de coqueluche aos 3 anos e, quando seu pai morreu, Asvaldur tinha 16 anos e estava no mar, por isso só soube após o enterro. Ele trabalhou 16 horas por dia durante toda a vida para manter sua família. Hoje tem emprego em tempo integral, cuidando de sua mulher inválida. Recebe dinheiro do Estado para isso, um dos principais motivos (e coerente com a cultura da coesão familiar) pelos quais a maioria dos islandeses idosos não vive em lares de retiro, mas em suas casas.
"Olho para trás e vejo como este país mudou e mal posso acreditar", diz Haraldur. A coisa mais notável foi o que aconteceu com três de suas netas, hoje adultas. Uma faz filmes documentários em Paris, outra é uma especialista em biotecnologia que assiste cirurgiões em um hospital em Reykjavik. A mais velha, com 26 anos, tem licença de piloto dos Estados Unidos e está fazendo treinamento para se tornar comandante da Ryanair.
Se a abelha voa, se a Islândia é o melhor lugar do mundo para se viver, e um dos mais ricos, é porque os governos souberam somar políticas esclarecidas à matéria-prima humana criativa e pragmática da ilha. "Como médico e como político, acredito que há uma estreita ligação entre a saúde do país e a qualidade das decisões políticas que são tomadas", acentua Dagur Eggertsson. "Há cem anos éramos um dos países mais pobres, mas todos sabíamos ler e tínhamos mulheres fortes. Sobre isso construímos políticas fortes. Minha tese é que, para a saúde de um país, mais importante do que não fumar e comer bem são os fenômenos sociais que enfatizamos aqui: igualdade, paz, democracia, água limpa, educação, energia renovável, direitos das mulheres".
A Islândia, por esses motivos, é um cadinho que conseguiu combinar as melhores qualidades da humanidade, oferecendo uma lição para o resto do mundo de como viver com sensibilidade e alegria, longe da falsidade, do preconceito e do tabu. A Islândia não poderia ser menos parecida com a África na superfície, não poderia estar mais distante do país em último lugar no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, Serra Leoa. Mas os islandeses tiveram a sabedoria de adotar, ou imitar acidentalmente, o melhor do que existe lá. Sem o menor problema.
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