A união entre pessoas do mesmo sexo e os Tribunais
Roberto Efrem Filho - Agência Carta Maior - 04/09/2008
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O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a possibilidade de discussão da união estável entre pessoas do mesmo sexo na seara do direito de família. Com esta decisão, o STJ avança na concepção do que é família e desafia os ranços conservadores de rastro religioso. É bom, mas é também perigoso.
Nesta semana, mais exatamente no dia 02 de setembro de 2008, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou decisão inédita em suas turmas: reconheceu a possibilidade de discussão da união estável entre pessoas do mesmo sexo na seara do direito de família. Apesar de, desde 1998, direitos de casais homossexuais serem afirmados pelo Tribunal - como pensões e partilhas de bens - todas as pretéritas questões eram tratadas como de direito patrimonial. Agora, é diferente. Com esta última decisão, o STJ avança na concepção do que é família e desafia os ranços conservadores de rastro religioso que a olhos vistos comandam as instituições nacionais. É bom, mas é também perigoso.
Cresce no Brasil um movimento político interessante. Diante das travas do Congresso Nacional, os Tribunais têm respondido a demandas que, de antemão, caberiam ao Parlamento. Desde 1995, há 13 anos, tramita em Brasília um projeto de autoria da então deputada Marta Suplicy, em que é proposta a regulamentação legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Esse projeto, hoje considerado, pela própria Marta Suplicy, já defasado, nunca foi votado. Em agosto de 2008, o Congresso optou por retirar da votação do projeto de lei que alterava a legislação nacional sobre adoção, a possibilidade de que casais homossexuais adotassem crianças. A desculpa dos(as) parlamentares: não existe uma maturidade no Congresso sobre a questão da união estável.
A votação na Quarta Turma do STJ foi apertada. Três votos a dois. O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará em pouco tempo sobre o tema. Lá, assuntos que envolvem convicções religiosas, apesar de todo um revestimento discursivo do jurídico, também sofrem nas votações. É só trazer à memória o reconhecimento da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. Seis votos a cinco, isso há alguns meses.
No STF, o relator do processo que pode vir a reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo é o ministro Carlos Ayres Britto. Trata-se de uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), proposta pelo Governador do Rio, Sérgio Cabral. Cabral requereu ao STF, através da ADPF 132, a equiparação de homossexuais a heterossexuais no que tange à aplicação do regime jurídico das uniões estáveis, previsto no Art. 1723 do Código Civil, aos funcionários públicos civis do estado. Repito: é bom, mas é também perigoso.
Alguns tribunais estaduais vêm reconhecendo há alguns anos uniões homossexuais. É o caso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Uma decisão do STF pode respaldar os tribunais estaduais progressistas ou minar sua legitimidade. A argumentação de juristas como Maria Berenice Dias e Paulo Lobo, com a qual concordo, é a de que a união estável entre pessoas do mesmo sexo, apesar de não ser diretamente citada na Constituição Federal, não é por ela proibida. Ainda segundo essa argumentação, o elenco de arranjos familiares previstos no Art. 226 da Constituição, não seria taxativo, finito, mas apenas exemplificativo. Desse modo o casamento entre homem e mulher, a união estável entre homem e mulher e a família monoparental não encerrariam as possibilidades do que seria a família.
Se o STF tomar para si a postura de Berenice Dias e Lobo, ótimo. Mas e se não tomar? Um, dois ou três ministros(as) serão responsáveis por decisões que "representantes do povo" afastaram de si. Tal afastamento, por certo, já diz de uma decisão, assim como toda omissão é inexoravelmente uma ação. O debate neste ponto é complicado, mas deve ser encarado de modo tático pelos setores que compõem a contra-hegemonia. O movimento LGBT - de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros - tem cumprido seu papel pressionando o Judiciário, alegando interesse processual e compondo a ADPF proposta por Sergio Cabral. Com o STF, o movimento tem feito o que faria com o Parlamento: política. Mas é preciso ter cuidado. O STF deve ser alvo de nossas atenções porque a conjuntura atual o exige e não porque seja o Poder Judiciário o baluarte das conquistas progressistas, da democracia e dos direitos humanos.
O Poder Judiciário cumpre estruturalmente uma função de mediação negadora dos reais conflitos sociais - como os de classe - através de sua relação com aquilo que ele mesmo chama de "pacificação de conflitos". Essa pacificação - fictícia - está muito próxima daquilo que Meszáros chama de ideologia do consenso, pois conduz à idéia de que o conflito não mais existe, de que ele foi solucionado, quando, de regra, ele foi apenas negado. Devemos então ignorar o que ocorre no Judiciário? Não, dicotomias rasas não se confundem com a dialética: devemos, como dito acima, lidar com ele taticamente, cientes de suas - e das nossas - contradições.
O avanço que o STJ proporcionou nesta semana fica para a história. A partir de agora casais de homossexuais poderão requerer em varas de família o reconhecimento de suas uniões estáveis com o respaldo jurisprudencial de um Tribunal Superior. O magistrado do Rio de Janeiro que alegou a existência de vícios formais no pedido do casal Antônio Carlos Silva e Brent James Townsend, porque duas pessoas do mesmo sexo não poderiam pedir tal reconhecimento, agora deverá analisar o caso e julgar seu mérito.
É, sem dúvida, um golpe no conservadorismo e na homofobia. Mas é pouco, bem pouco. A realização radical da democracia e dos direitos humanos pressupõe a desnecessidade de modelos fixos, de família ou do que quer que seja, nos quais precisamos nos encaixar para manter certa estabilidade social. A contra-hegemonia, no que diz respeito à afetividade inclusive, vai muito além do Judiciário ou do Estado, pretende-se a hegemonia da inexistência de modelos pré-estabelecidos. Isso definitivamente não combina com a lógica do capital. Irmana-se, pelo contrário, com a libertação.