Carta O Berro - Janeiro/2009
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Uma nação é um grupo unido por um erro comum.
- Gilad Atzmon - Inglaterra -
O historiador Shlomo Sand, professor da Universidade de Tel Aviv, inicia seu brilhante estudo do nacionalismo judeu citando a Karl W. Deutsch: "Uma nação é um grupo unido por um erro comum sobre sua origem e uma hostilidade coletiva para com seus vizinhos" [1].
Por muito simples ou inclusive simplista que pareça, essa citação resume com eloquência o produto da imaginação que se encontra emaranhado no nacionalismo judeu moderno e, sobretudo, no conceito de identidade judia. É óbvio que assinala com o dedo o erro coletivo que os judeus tendem a cometer cada vez que se referem a seu "ilusório passado coletivo" e a sua "origem coletiva". De uma mesma tacada, a leitura que Deutsch faz do nacionalismo lança luz sobre a hostilidade que, desgraçadamente, corre paralela em quase todos grupos judeus com respeito à realidade que os rodeia, já seja humana ou adote a forma de território. Enquanto que a brutalidade com que os israelenses tratam os palestinos é algo já fartamente conhecido, o áspero tratamento que os israelenses reservam para sua "terra prometida" e sua paisagem só agora começa a se revelar. O desastre ecológico que os atuais israelenses vão deixar será a causa do sofrimento de muitas gerações futuras. Deixando de lado o muro megalomaníaco que divide a terra santa em enclaves de depravação e fome, Israel conseguiu contaminar seus principais rios e riachos com resíduos nucleares e químicos.
When And How the Jewish People Was Invented [Quando e como foi inventado o povo judeu] é um estudo escrito pelo professor Shlomo Sand, um historiador israelense. Trata-se do estudo mais sério já publicado sobre o nacionalismo judeu e, de longe, a análise mais corajosa do discurso histórico judeu.
Em seu livro, Sand consegue provar fora de toda dúvida razoável que o povo judeu nunca existiu como "raça-nação" e nunca compartilhou uma origem comum. Muito ao contrário, trata-se de uma colorida mistura de grupos que em várias etapas da história adotaram a religião judia.
No caso de que o leitor acompanhe a linha de pensamento de Sand e chegue a se perguntar "Quando foi inventado o povo judeu?", a resposta de Sand é bastante simples: "Em algum momento do século XIX, alguns intelectuais de origem judia na Alemanha, influenciados pelo caráter folclórico do nacionalismo alemão, se impuseram a tarefa de inventar "retrospectivamente" um povo, ansiosos por criar um povo judeu moderno" [2].
De acordo com isto, o "povo judeu" é uma noção artificial formada por um passado fictício e imaginário com muito pouca substância que o respalde desde os pontos de vista legista, histórico ou textual. Além disso, Sand - que utilizou fontes iniciais da antiguidade - chega à conclusão de que o exílio judeu é também um mito e de que é muito mais provável que os palestinos atuais sejam os descendentes do antigo povo semita de Judéia/Canaã, em vez da multidão de asquenazes de origem kazária á qual ele reconhece pertencer.
O surpreendente é que, apesar de que Sand tenha conseguido desmantelar a noção de "povo judeu", de que destrói a noção de "passado coletivo judeu" e ridiculariza o ímpeto chovinista nacional judeu, seu livro é um best-seller em Israel. Este fato, por si mesmo, pode sugerir que aqueles que se chamam a si próprios "povo do livro" estão agora começando a se dar conta das posturas enganosas e devastadoras e ideologias que os converteram nisso que Khalid Amayreh e muitos outros consideram como os "nazistas de nosso tempo".
Hitler triunfou
Com muita freqüência, quando se pergunta a um judeu laico e cosmopolita o que é que o converte em judeu, este costuma replicar mastigando uma resposta vazia: "Foi Hitler que me fez judeu". Mesmo se o judeu cosmopolita, que é internacionalista, critica as inclinações nacionalistas de outros povos, insiste em seguir mantendo seu próprio direito à "autodeterminação". Entretanto, não é ele que dirige esta exigência de orientação nacional, senão que o diabo, esse monstro anti-semita chamado Hitler. Conforme parece, o judeu cosmopolita celebra seu direito ao nacionalismo sempre que puder transferir a culpa a Hitler.
No que toca ao judeu laico cosmopolita, Hitler triunfou. Sand consegue pôr de relevo este paradoxo. Com muita perspicácia sugere que "enquanto que no século XIX, referir-se aos judeus como ´uma identidade racial diferente` era um sinal de anti-semitismo, no Estado judeu isto está mental e intelectualmente enraizado [3]. Em Israel, os judeus celebram sua diferença e suas condições únicas. Além do mais, diz Sand, "houve momentos na Europa em que era possível ser tachado de anti-semita por dizer que todos os judeus pertencem a uma nação diferente. Hoje em dia, o fato de dizer que os judeus não foram nunca e continuam sem ser um povo ou uma nação faz com que uma pessoa possa ser qualificada como odiador de judeus" [4].
Não deixa de ser surpreendente que o único povo que conseguiu manter uma identidade nacional racialmente orientada, expansionista e genocida, a qual não se diferencia em nada da ideologia étnica nazista, sejam os judeus, que foram, entre outros, as principais vítimas da ideologia e da prática nazistas.
Nacionalismo em geral e nacionalismo judeu em particular
Louis-Ferdinand Celine mencionou que durante a Idade Média, entre as guerras, os cavaleiros cobravam um alto preço por estar dispostos a morrer em nome de seus reinos, enquanto que no século XX os jovens não hesitam em morrer em massa, mas sem pedir nada como recompensa. Para poder compreender esta mudança na consciência de massas é necessário um modelo metodológico eloqüente que nos permita decifrar em que consiste o nacionalismo.
Da mesma forma que Karl Deutsch, Sand considera a nacionalidade como um discurso fantasmático. É um fato estabelecido que os estudos antropológicos e históricos das origens de diferentes "povos" e "nações" conduzem à embaraçosa desintegração de qualquer etnia ou identidade étnica. Daí que é interessante constatar que os judeus tendem a levar muito a sério seu próprio mito étnico. A explicação pode ser simples, tal como Benjamin Beit Halachmi assinalou faz anos. O sionismo estava aí para transformar a Bíblia, que de texto espiritual passou a ser um "ato cartorial". Por isso, a verdade da Bíblia ou de qualquer outro elemento do discurso histórico judeu tem pouca importância, sempre que não interfira com a causa ou com a prática política nacional dos judeus.
Pode-se supor que a ausência de uma clara origem étnica não impede que se tenha o sentimento de pertinência étnica ou nacional. O fato de que os judeus estejam longe de ser um povo e de que a Bíblia seja um texto muito limitado em relação à verdade histórica não impede que gerações de israelitas e judeus se identifiquem com o rei David ou com o gigante Sansão. Está claro que a ausência de uma origem étnica inequívoca não impede que as pessoas se considerem parte de um povo. De maneira similar, também não impede que o judeu nacionalista tenha o sentimento de pertinência a uma grande coletividade abstrata.
Nos anos setenta, Shlomo Artzi, que então era um jovem cantor israelense a ponto de se converter na maior estrela de rock de Israel, gravou uma canção que alcançou um êxito multitudinário em questão de horas. Eis aqui os primeiros versos:
Um homem se desperta
Pela manhã
Sente que é povo
E se põe a caminhar
E a todo mundo com quem se cruza
Lhe diz shalom.
Até certo ponto Artzi expressou inocentemente em seus versos a brusquedade e a quase eventualidade da transformação dos judeus em um povo. No entanto, de forma simultânea, Artzi contribuiu para a ilusão do mito nacional da nação que busca a paz. Àquelas alturas, Artzi já deveria saber que o nacionalismo judeu era um ato colonialista a custas do povo autóctone palestino.
Ao que parece, o nacionalismo, a pertinência nacional e o nacionalismo judeu em particular são objeto de uma importante tarefa intelectual. É interessante observar que os primeiros a analisar teórica e metodicamente os assuntos relativos ao nacionalismo foram ideólogos marxistas. Embora o próprio Marx não tenha conseguido encontrar uma resposta adequada, o auge das exigências nacionalistas durante o século XX na Europa oriental e central pegou desprevenidos a Lenin e a Stalin.
A contribuição marxista ao estudo do nacionalismo pode ser considerada como o foco que ilumina a profunda relação existente entre o auge da livre economia e o desenvolvimento do Estado nacional [5]. De fato, Stalin resumiu a posição marxista: "A nação", disse, "é uma sólida colaboração entre seres, historicamente criada e formada de acordo com quatro fenômenos compartilhados: a língua, o território, a economia e a significação psíquica..." [6].
Como era de esperar, a tentativa marxista de compreender o nacionalismo carece de uma visão histórica adequada. Na ausência desta se baseia na luta de classes. Por razões óbvias, esta visão foi muito popular entre aqueles que crêem no "socialismo de uma nação", entre os quais podemos incluir aos proponentes de uma rama esquerdista do sionismo.
Para Sand, o nacionalismo evolucionou a causa do "êxtase criado pela modernidade que separa as pessoas de seu passado imediato" [7]. A mobilidade criada pela urbanização e a industrialização pulverizou o sistema hierárquico social, assim como a continuidade entre passado, presente e futuro. Sand assinala que antes da industrialização o camponês feudal não sentia obrigatoriamente a necessidade de um discurso histórico de impérios e reinos. O sujeito feudal não necessitava de um abstrato discurso histórico de amplas coletividades, que tinham muito pouca importância para sua necessidade existencial imediata e concreta. "Sem uma percepção de progressão social, se saia bem com um relato religioso imaginário que continha um mosaico de memória sem dimensão real de um tempo que avança. O 'fim' era o princípio e a eternidade fazia o papel de ponte entre a vida e a morte" [8]. No mundo urbano moderno e laico, o "tempo" se havia convertido no principal navio da vida que ilustra um sentido simbólico imaginário. O tempo histórico coletivo se havia convertido no ingrediente elementar do pessoal e do íntimo. O discurso coletivo da forma à significação pessoal e ao que parece ser "real". Por mais que pessoas banais sigam insistindo que "o pessoal é político", seria muito mais inteligível afirmar que na prática ocorre o contrário. Na condição posmoderna, o político é pessoal e o sujeito é falado, em vez de falar por si mesmo. A autenticidade é um mito que se reproduz a si mesmo sob a forma de um identificante simbólico.
A leitura feita por Sand do nacionalismo como produto da industrialização, da urbanização e da laicidade tem muito sentido se consideramos a sugestão de Uri Slezkin, segundo a qual os judeus são os "apóstolos da modernidade", da laicidade e da urbanização. Se os judeus encontraram a si mesmos no centro da organização e da laicidade, não deveria surpreender-nos que os sionistas fossem bastante criativos, como qualquer outro, na hora de inventar seu próprio relato imaginário coletivo e fantasmático. Porém, ao insistir em seu direito a ser "como qualquer outro povo", os sionistas conseguiram transformar seu passado coletivo imaginário num programa global, expansionista e despiedoso e na maior ameaça para a paz do mundo.
Não existe uma história judia
É um fato estabelecido que entre o século I e princípios do XIX não se escreveu nenhum texto histórico judeu. O fato de que o judaísmo se baseie em um mito histórico religioso pode ter algo a ver com isto. A tradição rabínica não se preocupou nunca de investigar adequadamente o passado judeu. É provável que uma das razões seja a ausência de necessidade de proceder a um esforço metódico. Para os judeus que viviam em tempos antigos e na Idade Média, a Bíblia estava aí para responder as perguntas mais relevantes relacionadas com a vida diária, a significação e o destino judeus. Tal como assinala Shlomo Sand, "o tempo cronológico laico era alheio ao 'tempo da diáspora', determinado pela espera da chegada do Messias".
Entretanto, à luz da laicidade, a urbanização e a emancipação alemãs e a causa da menor autoridade dos líderes rabínicos, surgiu a necessidade de uma causa alternativa entre os nascentes intelectuais judeus. O judeu emancipado se perguntava quem era, de onde vinha. Também começou a especular que sua função poderia estar no interior de uma sociedade européia cada vez mais aberta.
Em 1820, o historiador judeu alemão Isaak Markus Jost (1793–1860) publicou a primeira obra histórica séria sobre os judeus, intitulada The History of the Israelites. Jost evitou os tempos bíblicos, preferiu iniciar sua viagem com o reino de Judea e também compilou um discurso histórico das diferentes comunidades judias do mundo. Jost se deu conta de que os judeus de seu tempo não formavam uma continuidade étnica. Intuiu que os israelitas de distintos lugares eram diferentes. Daí que pensasse que não havia nada no mundo que pudesse impedir a total assimilação dos judeus. Jost acreditava que no interior do espírito ilustrado, tanto os alemães como os judeus dariam as costas à opressiva instituição religiosa e formariam uma saudável nação baseada num crescente sentido de pertinência geograficamente orientado.
Embora Jost fosse consciente do desenvolvimento do nacionalismo europeu, seus seguidores judeus estavam bastante descontentes com sua otimista leitura liberal do futuro judeu. "A partir do historiador Henrich Graetz, os historiadores judeus começaram a desenhar a história do judaísmo como a de uma nação que havia sido um 'reino', que foi expulsa ao 'exílio' e que se converteu em um povo errante que terminaria por regressar a sua terra natal" [9].
Para o falecido Moses Hess o que definiria a forma de Europa seria mais uma luta racial que uma luta de classes. Em consonância, sugeriu, valeria mais que os judeus refletissem sobre sua herança cultural e sua origem étnica. Para Hess, o conflito entre judeus e gentis era o produto da diferenciação racial, ou seja, algo inevitável. O caminho ideológico que vai da orientação racista pseudo-científica de Hess até o historicismo sionista é bastante óbvio. Se os judeus formam uma entidade racial diferente (tal como diziam Hess, Jabotinsky e outros), o melhor que podem fazer é dirigirem-se a sua pátria natural, e esta não é outra que Yeretz Yisrael. Esta claro que o raciocínio de Hess com respeito a uma continuidade racial carecia de base científica. Com vistas a manter o emergente discurso fantasmático, era necessário erguer um mecanismo orquestrado de negação para assegurar-se de que alguns fatos embaraçosos não interferissem com a emergente criação nacional.
Sand sugere que o mecanismo de negação foi algo orquestrado e muito bem planejado. A decisão da Universidade Hebréia nos anos trinta de separar a História Judia e a História Geral em dois departamentos diferentes foi algo mais que um assunto de conveniência. O propósito que está na base desta divisão é realçar a auto-realização judia. Para os universitários judeus, a condição e a psique judias eram algo único que deveria ser estudado por separado. Ao parecer, inclusive no interior do entorno acadêmico hebreu, os judeus, sua história e a percepção de si mesmos têm reservado um status supremo. Tal como Sand perspicazmente assinala, nos departamentos de Estudos Judeus o investigador está disperso entre o mitológico e o científico, enquanto que o mito mantém sua primazia, o que faz que frequentemente se trave em um dilema provocado por "pequenos fatos tortuosos".
O novo israelense, a Bíblia e a arqueologia
Na Palestina, os novos judeus, mais tarde israelenses, estavam determinados a recrutar o Antigo Testamento e transformá-lo no código amalgamado do futuro judeu. A "nacionalização" da Bíblia estava aí para implantar nos jovens judeus a idéia de que são os descendentes diretos de seus grandes antepassados antigos. Levando-se em conta que a nacionalização era um movimento amplamente laico, se extirpou o significado espiritual e religioso da Bíblia, que passou a ser considerada como um texto histórico que descrevia uma cadeia real de acontecimentos no passado. Os judeus que haviam conseguido matar a seu Deus aprenderam a crer em si mesmos. Massada, Sansão e Bar Kochva se converteram em discursos suicidas. À luz de seus heróicos antepassados, os judeus aprenderam a amar a si mesmos tanto como odiar aos demais, exceto que desta vez possuíam a capacidade militar de infligir uma dor real a seus vizinhos. Mais preocupante era o fato de que em vez de uma entidade sobrenatural - ou seja, Deus - que lhes ordenava invadir um território, levar a cabo um genocídio e roubar a "Terra Prometida" a seus habitantes autóctones, em seu renascido projeto nacional eram eles mesmos, Herzl, Jabotinsky, Weitzman, Ben Gurion, Sharon, Peres, Barak, os que decidiram expulsar, destruir e matar. Em vez de Deus, eram os judeus que matavam em nome do povo judeu. Fizeram-no com símbolos judeus decorando seus aviões e seus tanques. Seguiram as ordens que lhes davam na língua de seus antepassados recentemente restaurada.
O surpreendente é que Sand, que é sem dúvida alguma um lúcido historiador, não mencione que o seqüestro sionista da Bíblia foi de fato uma desesperada resposta judia ao jovem romanticismo alemão. No entanto, por mais ideológica e esteticamente excitados que estivessem os filósofos, poetas, arquitetos e artistas alemães pela Grécia pré-socrática, sabiam muito bem que eles não eram exatamente filhos e filhas do helenismo. O nacionalista judeu deu passo mais longe, integrou-se numa cadeia sangüínea fantasmática com seus míticos antepassados ao pouco tempo de haver restaurado sua língua antiga. De ser uma língua sagrada, o hebreu se havia convertido em uma língua falada. O jovem romanticismo alemão nunca chegou tão longe.
Os intelectuais alemães durante o século XIX eram também perfeitamente conscientes da distinção entre Atenas e Jerusalém. Para eles, Atenas era o universal, o capítulo épico da humanidade e o humanismo. Jerusalém era, pelo contrário, o grande capítulo da barbárie tribal. Jerusalém era uma representação de um Deus despiedado, banal, não universal e monoteísta, capaz de matar a anciões e a lactantes. A era romântica alemã inicial nos legou Hegel, Nietzche, Fichte e Heidegger e a uns quantos judeus que se odiavam a si mesmos, entre os quais o mais importante foi Otto Weininger. Os jerusalenistas não nos legaram nem um só pensador ideológico. Alguns acadêmicos judeus alemães de segunda categoria trataram de predicar Jerusalém na êxedra germânica, entre eles Herman Cohen, Franz Rosenzveig e Ernst Bloch. Obviamente, não chegaram a se dar conta de que os românticos alemães iniciais desprezavam as marcas de Jerusalém na cristandade.
Em seu esforço por ressuscitar "Jerusalém", acudiu-se à arqueologia para que proporcionasse uma base "científica" necessária ao epos sionista. A arqueologia estava aí para unificar o tempo bíblico com o momento da reinstauração. É provável que o momento mais surpreendente dessa estranha tendência ocorresse em 1982 com a "cerimônia do enterro militar" dos ossos de Shimon Bar Kochva, um rebelde judeu que havia morrido 2000 anos antes. Dirigido pelo rabino militar em chefe, procedeu-se ao enterro militar de uns quantos ossos encontrados numa cova perto do Mar Morto. Na prática, os supostos restos de um rebelde judeu do século I foram tratados como se fosse uma baixa do exército israelense. Estava claro que a arqueologia tinha uma função nacional, havia sido recrutada para consolidar o passado e o presente, deixando fora o Galut, o exílio judeu.
O surpreendente é que não passou muito tempo antes de que as coisas dessem um giro completo. Conforme a investigação arqueológica se foi independizando do dogma sionista, a embaraçosa verdade saiu à luz. Era impossível demonstrar a veracidade do relato bíblico com fatos forenses. Na verdade, a arqueologia refuta a historicidade do argumento bíblico. As escavações revelaram este incômodo fato. A Bíblia é um compêndio de inovadora literatura de ficção.
Tal como Sand assinala, a história bíblica primigênia está impregnada de filisteus, arameus e camelos. O embaraçoso é que as escavações demostram que os filisteus não apareceram na região antes do século XII a.C.; os arameus, um século depois e os camelos não mostraram suas caras joviais antes do século VIII. Estes fatos científicos colocaram os investigadores sionistas numa grave confusão. Não obstante, para alguns acadêmicos não judeus, como Thomas Thompson, estava bastante claro que a Bíblia é "um compêndio tardio de literatura inovadora escrita por um talentoso teólogo" [10]. A Bíblia parece ser um texto ideológico que estava aí para servir a uma causa social e política.
O pior é que no Sinai não foi possível encontrar muitas provas que confirmassem a história do lendário êxodo egípcio, em que uns três milhões de homens, mulheres e crianças hebreus vagaram no deserto durante 40 anos sem deixar o menor rasto. Nem sequer uma mísera Matzá, o pão ácimo judeu.
A história do novo reassentamento bíblico e do genocídio dos cananeus, que os israelitas contemporâneos imitam com tanto êxito, é outro mito. Jericó, a cidade fortificada que foi destruída a toque de trombetas com a intervenção sobrenatural do altíssimo, era só um pequeno povoado durante o século XII a.C.
Por mais que Israel considere a si mesmo como a reativação do monumental reino de David e Salomão, a escavação feita na velha cidade de Jerusalém durante os anos setenta revelou que o reino de David não era mais que um pequeno assentamento tribal. As provas que Yigal Yadim havia apresentado com respeito ao rei Salomão foram refutadas mais tarde com estudos forenses realizados com carbono 14. Estes incômodos fatos estão cientificamente estabelecidos. A Bíblia é um relato de ficção e não existe base alguma sobre a qual se possa basear qualquer gloriosa existência do povo hebreu na Palestina em nenhum momento.
Quem inventou os judeus?
Já desde o início de seu texto, Sand faz perguntas cruciais muito relevantes: Quem são os judeus? De onde vieram? Como é que em períodos históricos diferentes aparecem em lugares muito diferentes e remotos?
Embora a maioria dos judeus contemporâneos esteja totalmente convencida de que seus antepassados são os israelitas bíblicos, que foram brutalmente exilados pelos romanos, é preciso dizer a verdade. Os judeus contemporâneos não têm nada a ver com os antigos israelitas, que nunca foram enviados ao exílio porque tal expulsão nunca ocorreu. O exílio romano é outro mito judeu.
"Comecei a procurar estudos de investigação sobre o exílio", disse Sand numa entrevista concedida ao Haaretz [11], "mas descobri com assombro que não existe nenhuma literatura a respeito. A razão é que ninguém exilou o povo deste país. Os romanos não exilaram gente e não poderiam tê-lo feito, mesmo se tivessem desejado faze-lo. Careciam de trens e caminhões para deportar populações inteiras. Este tipo de logística não existiu antes do século XX. Meu livro nasceu, efetivamente, de uma constatação: da certeza de que a sociedade judaica não foi dispersada nem exilada".
Outrossim, à luz da simples introspecção de Sand, a idéia do exílio judeu chega a ser engraçada. Pode ser que o fato de pensar que a armada imperial romana se dedicasse vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, a transportar dificultosamente Moishe'le e Yanka'le até Córdoba e Toledo sirva para que os judeus se sintam importantes e transportáveis, porém o sentido comum sugere que os romanos tinham coisas mais importantes que fazer.
Entretanto, muito mais interessante é o resultado lógico: se o povo de Israel não foi expulso, então os verdadeiros descendentes dos habitantes do reino de Judá devem ser os palestinos.
"Nenhuma população permanece pura durante um período de milhares de anos", diz Sand [12]. "Porém as possibilidades de que os palestinos sejam descendentes do antigo povo judaico são muito maiores que as de que você ou eu sejamos seus descendentes. Os primeiros sionistas, até a Sublevação Árabe (1936–1939) sabiam que não tinha havido exílio e que os palestinos eram os descendentes dos habitantes do território. Sabiam que os camponeses não se vão até que os expulsem. Inclusive Yitzhak Ben-Zvi, o segundo presidente do Estado de Israel, escreveu em 1929 que "a maioria dos camponeses não descendem dos conquistadores árabes, senão que dos camponeses judeus, que eram numerosos e majoritários na construção do território".
Em seu livro, Sand vai ainda mais longe e sugere que até o Primeiro Levantamento Árabe (1929), os denominados líderes sionistas esquerdistas tinham tendência a crer que os camponeses palestinos, que são em realidade "judeus por sua origem", se assimilariam no interior da emergente cultura hebréia e terminariam por se unir ao movimento sionista. Ben Borochov acreditava que "um falach (camponês palestino) se vestir-se como um judeu e comportar-se como um judeu da classe trabalhadora, não se diferenciará em nada dos judeus". Esta mesma idéia reapareceu no texto de Ben Gurion e Ben-Zvi em 1918. Ambos líderes sionistas se deram conta de que a cultura palestina está impregnada de marcas bíblicas, tanto do ponto de vista lingüístico como geográfico (nomes de aldeias, povoados, rios e montanhas). Ben Gurion e Ben-Zvi, pelo menos ao princípio, consideravam os palestinos nativos como parentes étnicos que permaneciam apegados à terra e eram irmãos potenciais. Também consideravam o islã como uma amistosa "religião democrática". Claramente, depois de 1936, tanto Ben Gurion como Ben-Zvi diluíram seu entusiasmo "multicultural". No que diz respeito a Ben Gurion, a limpeza étnica dos palestinos lhe pareceu muito mais atrativa.
Vale a pena fazer a pergunta: se os palestinos são os autênticos judeus, quem são esses que insistem em chamar-se a si mesmos judeus?
A resposta de Sand é bastante simples, mas está cheia de sentido. "O povo não se disseminou, foi a religião judia a que se disseminou. O judaísmo era uma religião de conversos. Contrariamente ao sentir popular, o judaísmo inicial adorava converter aos demais" [13].
É evidente que as religiões monoteístas, ao serem menos tolerantes que as politeístas, têm um ímpeto de expansão. O expansionismo judaico em seus primeiros dias não só era similar ao cristianismo, senão que foi o expansionismo judaico que plantou as sementes da disseminação no pensamento e na prática cristãs iniciais. "Os hasmoneus", diz Sand [14], "foram os primeiros a contribuir com um grande número de conversos à massa judia, e isso sob a influência do helenismo. Foi esta tradição das conversões o que preparou o terreno para a posterior disseminação da cristandade. Após a vitória da cristandade no século IV, a tendência à conversão ao judaísmo se deteve no mundo cristão e houve uma diminuição importante no número de judeus. É provável que muitos dos judeus do entorno mediterrâneo se converteram em cristãos. Mas então o judaísmo começou a penetrar outras regiões pagãs, tais como o Yemen e a África do Norte. Se o judaísmo não houvesse continuado seu avanço naquele momento convertendo povos do mundo pagão, teria continuado a ser uma religião completamente marginal, no caso da haver sobrevivido".
Os judeus da Espanha, que cremos estar relacionados mediante laços de sangue com os israelitas iniciais, parecem ser berberes convertidos. "Perguntei a mim mesmo", diz Sand, "como foi que apareceram na Espanha umas comunidades judias tão numerosas. Então vi que Tariq ibn Ziyad, o comandante supremo dos muçulmanos que conquistaram a Espanha, era berbere, e que a maior parte de seus soldados eram berberes. O reino berbere judeu de Dahlia al-Kahima havia sido derrotado só 15 anos antes. E a verdade é que um certo número de fontes cristãs dizem que muitos dos conquistadores da Espanha eram judeus conversos. A fonte mais profunda da grande comunidade judia da Espanha eram aqueles soldados berberes que se converteram ao judaísmo".
Como era de esperar, Sand aprova a assunção amplamente aceita de que os kazários judaizados constituíram as principais origens das comunidades judias da Europa do Leste, que ele denomina a Nação Yiddish. Quando lhe perguntaram como foi que chegaram a falar o yiddish, que é considerado como um dialeto medieval alemão, ele respondeu: "Os judeus eram um povo que dependia da burguesia alemã no Leste, assim que adotaram palavras alemãs".
Em seu livro, Sand oferece uma enumeração detalhada da saga kazária na história judia. Explica o que foi que levou o reino kazário à conversão. Levando em conta que o nacionalismo judeu está liderado em sua maior parte por uma elite kazária, pode ser que devamos expandir nosso conhecimento íntimo deste grupo político tão único e influente. A tradução da obra de Sand a outras línguas é uma necessidade imediata (a tradução francesa está a ponto de aparecer, tal como de diz em Are the Jews na invented people?, de Eric Rouleau.
O que vem a continuação?
O professor Sand nos deixa com a inevitável conclusão: os judeus contemporâneos não têm uma origem comum e sua origem semita é um mito. Os judeus não se originam na Palestina de nenhum modo e, por tanto, seu denominado "retorno" à "terra prometida" deve ser considerado como uma invasão executada por um clã ideológico tribal.
No entanto, apesar de que os judeus não constituem uma raça, por alguma razão parecem ter uma orientação racial. Deve-se assinalar que muitos judeus ainda consideram o casamento misto como a maior ameaça. Além disso, apesar da modernização e laicidade, a maioria dos que se identificam como judeus laicos continuam sucumbindo ao ritual do sangue, a circuncisão, um procedimento religioso único no qual um Mohel, o executor, chupa o sangue do circuncidado.
No que diz respeito a Sand, Israel deve converter-se em "um Estado de seus cidadãos". Assim como Sand, eu também compartilho a mesma visão utópica futurista. Não obstante, contrariamente a Sand, considero que o Estado judeu e os grupos de pressão que o apóiam devem ser ideologicamente derrotados. A irmandade e a reconciliação são alheias à visão do mundo tribal dos judeus e não cabem no conceito de ressurgimento nacional judeu. Por mais terrível que soe, antes de que os israelitas possam adotar uma noção moderna e universal da vida civil, será necessário um processo de desjudeização.
Não há dúvida de que Sand é um extraordinário intelectual, provavelmente o pensador esquerdista israelense mais avançado. Representa a forma mais elevada de pensamento que um israelense laico pode alcançar antes de retroceder ou incluso de desertar ao lado palestino (o que é algo que ocorreu com uns poucos, incluindo a mim). Ofri Ilani, o entrevistador de Haaretz, disse de Sand que, contrariamente a outros "novos historiadores" que têm tratado socavar as assunções da historiografia sionista, "Sand não se contenta com retroceder a 1948 ou aos princípios do sionismo, senão que retrocede milhares de anos". É assim, contrariamente aos "novos historiadores", que "revelam" uma verdade que qualquer criança palestina conhece, ou seja, a verdade de que estão sendo objeto de uma limpeza étnica, Sand erige um corpus de obra e pensamento que busca a compreensão do significado do nacionalismo judeu e da identidade judia. Essa é a essência verdadeira da erudição. Mais que reunir fragmentos históricos esporádicos, Sand busca o significado da história. Mais que um "novo historiador" que busca um novo fragmento, é um autêntico historiador motivado por uma tarefa humanista. Contrariamente a alguns dos historiadores judeus que contribuem ao denominado discurso de esquerda, a credibilidade e o êxito de Sand se baseiam mais em seus argumentos do que em seus antecedentes familiares. Evita adornar seus argumentos com seus parentes que sobreviveram ao holocausto. Ao ler os ferozes argumentos de Sand, deve-se admitir que o sionismo, com todos os seus defeitos, conseguiu erigir no interior de si mesmo um discurso orgulhoso e autônomo que é muito mais eloqüente e brutal que a totalidade do movimento anti-sionista no mundo inteiro.
Se Sand tiver razão, e estou convencido de que tem, os judeus não são uma raça e sim um coletivo de muita gente amplamente seqüestrada por um movimento nacional fantasmático tardio. Se os judeus não são uma raça, não forma um grupo racial e não têm nada a ver com o semitismo, o anti-semitismo é, categoricamente, um significante vazio. Claramente se refere a um significante que não existe. Em outras palavras, nossa crítica do nacionalismo judeu, dos grupos de pressão judeus e do poder judeu só se podem conceber como uma crítica legítima de ideologia e de prática.
Repito novamente, não estamos e nunca estivemos contra os judeus (o povo), nem contra o judaísmo (a religião); estamos contra uma filosofia coletiva de claros interesses globais. Alguns podem preferir chamar-la sionismo, mas eu prefiro não fazê-lo. O sionismo é um significante demasiado estreito para compreender a complexidade do nacionalismo judeu, sua brutalidade, sua ideologia e sua prática. O nacionalismo judeu é um espírito e os espíritos não têm fronteiras bem delimitadas. De fato, nenhum de nós sabe exatamente onde termina a judeidade e onde começa o sionismo, da mesma maneira que não sabemos onde terminam os interesses israelenses e onde começam os interesses dos neocons.
No que diz respeito à causa Palestina, a mensagem é devastadora. Nossos irmãos e irmãs palestinos estão na vanguarda de uma luta contra uma filosofia devastadora. Mas está claro que não só os israelenses, aos quais se enfrentam com valente pragmatismo, os que iniciam conflitos globais de escala gigantesca. Se trata de uma prática tribal que busca a influência nos corredores do poder e de superpoder. O American Jewish Committee busca uma guerra contra o Irã. Só para situar-se no lado seguro, David Abrahams, um "amigo laborista de Israel", doa dinheiro por delegação ao Partido Laborista. Mais ou menos ao mesmo tempo, dois milhões de iraquianos morrem numa guerra ilegal desenhada por alguém chamado Wolfowitz. Enquanto tudo isto ocorre, milhões de palestinos passam fome em campos de concentração e Gaza está à beira de uma crise humanitária. Enquanto isso ocorre, judeus "anti-sionistas" e judeus de esquerda (incluindo Chomsky) insistem em neutralizar as críticas contra o AIPAC, o grupo de pressão judeu e o poder judeu de Mearcheimer e Walt [15].
É só Israel? É realmente sionismo? Ou devemos admitir que é algo muito maior do que podemos contemplar dentro das fronteiras intelectuais que impomos a nós mesmos? Tal como andam as coisas, carecemos da coragem intelectual para nos enfrentarmos ao projeto nacional judeu e a seus muitos mensageiros em todo o mundo. Entretanto, como tudo é questão de inverter consciências, as coisas vão mudar logo. De fato, este texto foi escrito para provar que já estão mudando. Defender os palestinos é salvar o mundo, mas para fazê-lo temos de ter suficiente coragem como para admitir que não se trata meramente de uma batalha política. Não é só Israel, seu exército ou sua dirigência; também não são Dershowitz, Foxman e suas ligas silenciadoras. Trata-se de uma guerra contra um espírito canceroso que seqüestrou o Ocidente e, ao menos no momento, o desviou de sua inclinação humanista e de suas aspirações atenienses. Lutar contra um espírito é muito mais difícil que lutar contra gente, precisamente porque talvez seja necessário lutar primeiro contra suas marcas dentro de nós mesmos. Se quisermos lutar contra Jerusalém, primeiro teremos que confrontar a Jerusalém que levamos dentro. Pode ser que tenhamos que nos situar diante do espelho e olhar ao redor. Pode ser que tenhamos que buscar rastos de empatia em nosso interior, se é que ainda permanece algum.
Notas:
- [1] When And How The Jewish People Was Invented?, Shlomo Sand, Resling 2008, p. 11.
- [2] http://www.haaretz.com/hasen/spages/966952.html
- [3] When And How The Jewish People Was Invented?, Shlomo Sand, Resling 2008, p. 31.
- [4] Ibid, p. 31.
- [5] Ibid, p. 42.
- [6] Ibid.
- [7] Ibid, p. 62.
- [8] Ibid.
- [9] http://www.haaretz.com/hasen/spages/966952.html
- [10] When And How The Jewish People Was Invented? - Shlomo Sand, Resling 2008, p. 117.
- [11] http://www.haaretz.com/hasen/spages/966952.html
- [12] Ibid.
- [13] Ibid.
- [14] Ibid.
- [15] http://www.lrb.co.uk/v28/n06/mear01_.html
http://www.alquimidia.org/desacato/index.php?mod=noticia&id=1984
O ex-judeu Gilad Atzmon é músico, escritor e ativista pró-palestino.Versão em português: Jair de Souza, Brasil.