Quando todos só cumprem ordens
Ruth de Aquino - Revista Época nº 528 de 30/06/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EMI6931-15230,00.html
Ruth de Aquino - Revista Época nº 528 de 30/06/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EMI6931-15230,00.html
Ao comandar o porão onde dezenas de presos políticos morreram sob tortura, de 1970 a 1974, o coronel Brilhante Ustra fez o que se esperava dele. "Cumpri, rigorosamente, as ordens emanadas de meus superiores", diz. Do passado incômodo até hoje, mais de 30 anos se passaram, mas crimes ainda são cometidos sob a mesma alegação. Uma mistura de disciplina e omissão. Jamais ingenuidade. No Morro da Providência, no Rio de Janeiro, civis e militares cumpriram ordens. Três jovens foram entregues por soldados do Exército a traficantes. E trucidados. Perguntas continuam sem resposta, três semanas depois da barbárie.
Ustra, ex-chefe do DOI-Codi paulista, não quer ser crucificado sozinho pela repressão da ditadura. Chama agora aliados e cúmplices para cerrar fileiras com ele. O repórter Matheus Leitão, de ÉPOCA, teve acesso à defesa de Ustra (leia a reportagem). Hoje aposentado, em Brasília, ele convocou em sua defesa Romeu Tuma (PTB-SP), ex-delegado e atual senador da base aliada do governo, e generais do Exército, entre eles o comandante Enzo Peri. Todos sabiam da "situação". Deram ordens e o coronel cumpriu. Ninguém admite o que todos sabem: presos políticos foram torturados e mortos nas mãos de comandantes e comandados.
O filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre costumava dizer que estamos condenados a ser livres. Se acreditarmos nisso, somos livres e por isso somos responsáveis. E, se cumprimos ordens, é porque compactuamos com elas e não somos inocentes. Cumprimos ordens por medo, ambição ou convicção. Se substituímos a convicção pela disciplina cega, pela obediência burra, pela submissão incondicional, o que resta para viver?
Tuma foi o delegado da Polícia Civil que manteve o então sindicalista Lula preso, sob acusação de crime contra a Lei de Segurança Nacional. Tuma cumpria ordens do Planalto. Peri, atual comandande do Exército, também sabia de tudo, diz Ustra. Peri foi, por coincidência, quem mandou ao Morro da Providência, no Rio, 250 militares, em dezembro passado. Sem aprovação do Congresso e antes de qualquer convênio ser assinado. A tropa foi supervisionar a reforma de casas proposta pelo senador Marcelo Crivella, pré-candidato à Prefeitura do Rio pelo PRB, aliado do presidente Lula.
A evasão de responsabilidade reúne o coronel da tortura,
os soldados no morro, senadores, delegados, ministros e o governador.
os soldados no morro, senadores, delegados, ministros e o governador.
Na lambança da Providência, a favela mais antiga do Rio, todos cumpriam ordens de cima. E cometeram abusos. Crivella foi a Lula em setembro de 2007 para aprovar seu projeto Cimento Social. Uma página de argumentos, e canetada a favor. O Ministério da Defesa, cumprindo ordens, mandou militares ao morro sem consultar a Secretaria de Segurança do Estado do Rio. O Ministério das Cidades, cumprindo ordens, liberou em tempo recorde quase R$ 2 milhões. O governador Sérgio Cabral, cumprindo ordens, não protestou contra a presença de tropas na obra de um candidato amigo do presidente. O Exército, cumprindo ordens, terceirizou a obra para a Construtora Edil. Aproveitou a verba para comprar para si poltronas reclináveis de couro e um furgão. Consertaram um Land Rover e um Toyota (leia a reportagem).
O Exército cumpriu ordens e deixou o tráfico solto na Providência. Cumprindo ordens do tenente Vinicius Ghidetti, de 25 anos, dez militares entregaram três rapazes, por "desacato", aos traficantes rivais, do Morro da Mineira. Cumprindo ordens, o motorista de um caminhão de lixo levou os restos para um aterro na Baixada Fluminense. Cumprindo ordens, o delegado Ricardo Dominguez levou duas semanas para investigar o crime e não revela os nomes dos assassinos, embora tenham sido identificados. Cumprindo ordens, o ministro das Cidades, Márcio Fortes, se recusa a dar entrevistas.
A sensação é de estar diante de uma omertà, a lei de silêncio imposta por máfias. Para que essa história nunca seja contada direito. A ordem é enrolar até aparecer outro escândalo. Alguém ainda se lembra dos milicianos que torturaram jornalistas? Também cumpriam ordens. Tem sempre alguém mandando e alguém obedecendo.
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A Resposta de Ustra
Matheus Leitão - Revista Época nº 528 de 30/06/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI6750-15223,00-A+RESPOSTA+DE+USTRA.html
Matheus Leitão - Revista Época nº 528 de 30/06/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI6750-15223,00-A+RESPOSTA+DE+USTRA.html
Coronel acusado de comandar a tortura no DOI paulista diz que Romeu Tuma sabia de tudo e pede testemunho dos atuais comandantes militares.
Alvo de uma ação do Ministério Público que tenta obrigá-lo a arcar até com as despesas da União com indenização de presos políticos, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra já montou sua defesa num possível processo. Entre 1970 e 1974, Ustra foi comandante do DOI-CODI paulista. Pelo menos 60 militantes de esquerda perderam a vida em confrontos com o órgão. Centenas foram submetidos a tortura.
Para defender-se, Ustra faz um apelo genérico e uma convocação específica. Ele quer que o atual senador Romeu Tuma seja ouvido como testemunha de sua defesa. Num texto de 31 páginas, ao qual ÉPOCA teve acesso com exclusividade, Ustra diz que Tuma "acompanhou e viveu a situação de violência da época e o trabalho do DOI, já que, como delegado da Polícia Civil, era o elemento de ligação entre o Comando do II Exército e o Departamento de Ordem Política e Social, órgão no qual estava lotado". Ustra constituiu um advogado para orientá-lo no processo, Paulo Esteves.
Além do senador Romeu Tuma, Ustra convoca quatro oficiais da ativa do Exército para servirem com suas testemunhas. Ele não está falando de baixas patentes, mas do próprio comandante do Exército, Enzo Martins Peri; do comandante militar do Sudeste, onde funcionava o DOI paulista; do Chefe do Estado Maior do Sudeste e do chefe do Centro Inteligência do Exército, CIEx. Referindo-se a oficiais de gerações posteriores, que fizeram carreira após a democratização, Ustra escreve que "tais militares, ainda que jovens naquela época, vivenciaram ou acompanharam a violência daquela quadra conturbada".
Com esse pedido, a investigação sobre o passado da ditadura pode transformar-se em confusão e constrangimento no presente.
O argumento de Ustra para chamar Tuma é que o então delegado acompanhava de perto aos trabalhos dos órgãos de repressão que prenderam adversários do regime, em particular integrantes de organizações armadas. No texto de sua defesa, ele lembra que o trabalho do delegado consistia em realizar inquéritos relativos às prisões realizadas pelo DOI. A escolha de Tuma não é casual.
Filiado ao PTB, o senador integra a base parlamentar do governo Lula, de onde têm partido sinais de estímulo à reabertura de investigações dos crimes ocorridos durante a ditadura militar e também sobre o papel de Ustra à frente do DOI.
Nos anos finais do regime militar, Tuma foi o delegado que, cumprindo ordens do Planalto, manteve o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva sob prisão, acusado de crime definido na Lei de Segurança Nacional. Lula estava preso quando sua mãe, muito doente, morreu. Tuma permitiu que Lula saísse da prisão para acompanhar o enterro. Entre amigos do presidente da República, é comum dizer que esse gesto marcou uma primeira aproximação entre o delegado e o sindicalista.
Como delegado da Polícia Civil, Tuma teve um papel que ainda não foi inteiramente esclarecido nos anos de chumbo. Tuma atuou como elemento de ligação entre o DOPS paulista e a área militar. Ao colocar o nome do delegado e hoje senador num processo em que é chamado a prestar contas sobre o passado, situação que jamais ocorreu no país, Ustra faz uma clássica manobra diversionista, procurando abrigo na sombra de Romeu Tuma, hoje um político prestigiado, que fez a transição do regime militar para a democracia civil sem maiores manchas na biografia.
ÉPOCA procurou ouvir o senador na noite desta quarta-feira (25/06/2008), fazendo sucessivos pedidos à sua assessoria de imprensa. Não havia obtido resposta até o fechamento desta reportagem. A atitude de Ustra deve ser examinada com cautela, cabendo inclusive a pergunta: por que são feitas agora, três décadas depois de os fatos terem ocorrido? Tuma ocupou uma posição chave na máquina policial, sob o regime militar. Cumpria tarefas de inteligência na investigação das organizações de esquerda e até hoje nunca foi denunciado por envolvimento em tortura ou assassinatos.
Em conversas privadas, Ustra revela que Tuma comparecia praticamente todos os dias ao DOI e que teria conhecimento de tudo o que acontecia ali. Conforme o coronel, o delegado acompanhava todos os serviços - no próprio local.
Ustra sustenta que nunca participou de torturas nem autorizou qualquer tipo de violência contra presos políticos. Essa alegação é negada pelo depoimento de dezenas de presos políticos do período. O coronel lembra que o então delegado tinha função de registrar legalmente as prisões efetuadas pelo DOI. Em suas palavras, se alguém foi "estraçalhado" no porão militar, Tuma também viu tudo.
Em sua defesa, Ustra emprega outro argumento esperado nessas circunstâncias: "cumpri, rigorosamente, as ordens emanadas de meus superiores". Eles foram, conforme o texto, o presidente Emílio Garrastazu Médici e outros sete generais - todos já mortos. O coronel também afirma que: "tenho a certeza de que esses homens, com sua estirpe e com seu passado, se vivos fossem não me deixariam só nesta hora em que os revanchistas de plantão, por vingança, querem colocar-me em julgamento".
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