A Tortura Destrói a Inteligência
Solange Azevedo - Darius Rejali - Revista Época nº 531 de 21/07/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT8294-15295-8294-3934,00.html
O autor de uma obra de referência sobre tortura diz por que ela tem se perpetuado - e como combatê-la.
Vivendo nos Estados Unidos há três décadas, o iraniano Darius Rejali, de 49 anos, é filósofo e PH.D. em Ciência Política. Pesquisador das causas e conseqüências da violência, tornou-se um dos maiores especialistas mundiais em tortura moderna e métodos de interrogatório. Em seu livro mais recente, Tortura e Democracia, ele analisa as práticas adotadas por torturadores desde o fim do século XIX. "A tortura é uma das formas mais ineficazes de conseguir informações confiáveis", diz. "Se o objetivo é arrancar uma confissão falsa, ela funciona. Uma pessoa pode falar qualquer coisa para parar de apanhar". Rejali tenta explicar por que a tortura não foi banida do planeta. Nem de países autoritários nem de nações democráticas.
Darius Rejali
Revista Época - Tortura e democracia não são incompatíveis?
Darius Rejali - A tortura ainda existe em países democráticos por diversas razões. Em apenas um terço dos casos, gente é torturada por questões ligadas à segurança nacional. Em muitas democracias, empresários e donos de grandes propriedades negociam com a polícia para que ela mantenha as ruas seguras. Para cumprir esse acordo, os policiais fazem qualquer coisa. A tortura também está relacionada a sistemas de justiça que enfatizam a confissão e a longos períodos de prisão sem que o suspeito tenha sido condenado. Alguma semelhança com o Brasil? No Japão, 86% das pessoas que vão a julgamento confessam os crimes. Num sistema assim, a polícia faz de tudo para obter a confissão.
RE - A tortura é um método eficaz para obter informações?
Rejali - Se o objetivo é arrancar uma confissão falsa, ela funciona. Uma pessoa pode falar qualquer coisa para parar de apanhar. A tortura é uma das formas mais ineficazes de conseguir informações confiáveis. Sem cooperação pública, da sociedade, as chances de obter dados fidedignos caem a menos de 10%. Está provado que as informações obtidas pela Gestapo (a polícia secreta alemã durante o nazismo) por meio da tortura foram irrelevantes. A Gestapo nunca admitiu ter torturado. Costumava dizer apenas que fazia interrogatórios difíceis. É dessa forma que muitos aparelhos do Estado se referem à tortura.
RE - Se a tortura não funciona, por que ainda é adotada?
Rejali - Primeiro, porque há governantes que não têm interesse em estudar a eficácia da tortura. Numa guerra, os soldados acham que tudo o que eles fazem funciona. Outro problema é que, quando os países reúnem informações sobre tortura, eles não as analisam. Até os anos 80, a imensa base de dados da CIA (a central de espionagem americana) não foi examinada. Isso está sendo feito agora. A falta de interesse ocorre porque essa análise pode esbarrar em questões legais. Há governantes que não se importam se a tortura funciona ou não. Eles não se atêm aos fatos. Mas à ideologia. Querem apenas provar para os outros que são enérgicos.
RE - Casos de tortura têm sido mais freqüentes no mundo?
Rejali - É impossível saber a magnitude disso. Ao longo do tempo, técnicas de tortura que deixavam marcas foram substituídas pela tortura chamada de limpa. Técnicas como eletrochoque e pancadas nas solas dos pés, que deixam menos marcas, se espalharam rapidamente. Há 60 anos, apenas cinco ou seis países usavam o eletrochoque. Agora, cerca de cem países já registraram casos desse tipo. Organizações de direitos humanos e jornalistas obrigaram os torturadores a mudar. Isso aconteceu primeiro nas democracias.
RE - Por quê?
Rejali - Porque a prática da tortura afeta a legitimidade da democracia e da polícia. De modo crescente, até países autoritários entenderam que eles também só alcançam a legitimidade e conseguem auxílio internacional se tiverem bom desempenho em direitos humanos. Sem essa condição, não vem dinheiro de fora. Outras questões econômicas também motivaram a adoção da tortura mais limpa. Senhores de escravos não gostavam de deixar marcas, porque elas mostravam que o escravo não era obediente. Com isso, seu valor de mercado diminuía.
RE - O ciclo da tortura pode ser quebrado?
Rejali - Boas organizações políticas e sociais podem eliminar grande parte desse problema. A tortura foi comum nos Estados Unidos entre 1910 e 1940. Para diminuí-la, o Estado americano criou regras e passou a punir quem as violasse. Então, a tortura organizada praticamente desapareceu. Um dos casos mais famosos nos EUA ocorreu em Chicago. De 1973 a 1992, a polícia local torturou mais de 200 suspeitos para que eles confessassem crimes. Muitos confessaram e foram condenados à morte.
RE - Por que isso se deu em Chicago?
Rejali - Primeiro, porque a tortura praticada ali era limpa. Ninguém acreditava que aquelas pessoas tinham sido torturadas, porque não apresentavam marcas. Muitas foram examinadas por médicos e nem eles conseguiram detectar os sinais. Outra questão é que o comandante da polícia de Chicago nessa época era um veterano da Guerra do Vietnã. Ele tinha familiaridade com as técnicas de tortura usadas pelas tropas americanas e levou-as para a cidade. Quando acabar a Guerra do Iraque, é provável que casos de tortura fiquem mais comuns nos Estados Unidos com a volta dos soldados. O país ainda também tem de lidar com problemas como Abu Ghraib e Guantánamo.
"Quem submete os outros à tortura costuma ter problemas
como alcoolismo e distúrbios psicológicos sérios".
RE - Os cidadãos americanos defendem o emprego de tortura?
Rejali - Pesquisas mostram que não. A diminuição da tortura, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar, tem relação com a disposição dos governantes em implementar medidas contra essa prática, em apoiar organizações de direitos humanos e em controlar a polícia e as cadeias. Se os governantes fizerem isso, é provável que os torturadores desapareçam. O problema é que muitas vezes a tortura persiste porque alguns governantes têm receio de parecer fracos. Não se trata de uma questão de valores. Está claro que, na maioria das democracias, o povo não admite tortura.
RE - Na série de TV 24 Horas, o personagem Jack Bauer, vivido pelo ator Kiefer Sutherland, é um policial torturador. O sucesso do personagem é um sinal de apoio popular à tortura?
Rejali - Se Jack Bauer fosse um policial de verdade, teria sido demitido há muito tempo. Ele é um torturador e usa poucos recursos de inteligência para obter informações confiáveis. Apesar da popularidade da série nos Estados Unidos, ela não mudou a opinião dos americanos. Pesquisas de opinião mostram que entre 55% e 65% são contra a tortura.
RE - As técnicas de tortura migram?
Rejali - Sem dúvida. Os franceses usaram paus-de-arara muito antes dos militares brasileiros. Em todo o mundo, prevalecem dois estilos de tortura contemporânea: o francês (que tenta infligir dor, ainda que sem deixar marcas) e o anglo-saxão (que tenta levar o torturado à exaustão física e mental).
RE - Quais são as conseqüências da tortura?
Rejali - Além de destruir as vítimas, a tortura pode destruir os torturadores. É comum quem submete os outros à tortura ter problemas como alcoolismo, violência familiar e distúrbios psicológicos sérios. Para os governos, a tortura é negativa porque destrói os setores de inteligência.
É uma bestialidade. Um abraço. Drauzio Milagres.
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