domingo, 7 de setembro de 2008

Para Tortura, Não Há Anistia (Baltasar Garzón)


Para Tortura, Não Há Anistia
Kátia Mello - foto de Adriano Machado - Revista Época nº 536 de 25/08/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI10992-15295,00-BALTASAR+GARZON+PARA+TORTURA+NAO+HA+ANISTIA.html



O juiz espanhol que caça ditadores diz que investigar crimes contra a humanidade fortalece a democracia.




O juiz espanhol Baltasar Garzón é, talvez, a maior celebridade do mundo jurídico internacional. Tornou-se conhecido em 1998, quando emitiu um mandado de prisão contra o general Augusto Pinochet, sob a acusação de tortura e morte de cidadãos espanhóis no Chile. O ex-ditador se encontrava em Londres para tratamento de saúde. Depois de meses de deliberação, o governo britânico negou a extradição de Pinochet. Mas a ousadia de Garzón inovou o conceito de territorialidade no Direito. Teve o efeito prático de tolher a liberdade de movimento de ditadores, ex-ditadores e torturadores em geral. Na segunda-feira, o juiz andaluz de 52 anos fez uma palestra em São Paulo a convite da Secretaria dos Direitos Humanos.





Baltasar Garzón






Época - O senhor afirmou que a abertura dos arquivos sobre a ditadura no Brasil não provocará instabilidade política.



Baltasar Garzón - A abertura dos arquivos da ditadura não vai colocar em risco a segurança do Brasil, assim como de qualquer outro país democrático. Ao contrário, irá fortalecê-la. A democracia brasileira está absolutamente consolidada e, portanto, não é isso que afetará o sistema político do país. Já existe uma lei, uma comissão do direito à memória, ações civis do Ministério Público em alguns âmbitos e até a manifestação dos opositores, dos possíveis afetados pela abertura de arquivos. Já se começou também uma investigação penal. Agora, cabe à Justiça brasileira decidir se é possível interpretar a Lei da Anistia conforme as normas nacionais e internacionais.






RE - O ministro da Justiça, Tarso Genro, disse que a tortura não foi incluída na Lei da Anistia. Ao mesmo tempo, o presidente Lula tenta evitar esse debate.



Garzón - Pelo que entendi, corrija-me se eu estiver equivocado, o ministro Genro disse que a tortura não pode ser considerada como um delito político. Se foi isso o que ele disse, estou de acordo com ele. Se não foi isso, posso dizer que a tortura não pode ser considerada como delito político caso tenha sido praticada de forma sistemática, num plano preconcebido contra parcelas da população. Isso se configura como crime de lesa-humanidade. Se nenhum crime de lesa-humanidade pode ser considerado crime político, ele não pode ser anistiado, como dizem as leis internacionais e a própria Constituição brasileira. Quanto à polêmica, ela sempre acontecerá a respeito de qualquer tema político delicado, seja no Brasil, na Espanha ou em qualquer lugar do mundo. Temos de diferenciar a polêmica política da questão judicial. A análise da aplicação e da extensão da Lei da Anistia e a da prescrição dos crimes da ditadura são questões jurídicas.






RE - Mas essas são questões jurídicas que tocam feridas do Brasil...



Garzón - Sim, mas as feridas do país se referem a uma série de crimes que devem ser analisados dentro do princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei. E a lei não deve abrir exceções. Estamos diante de crimes que não são anistiáveis. Por isso, deve-se começar a investigação.






RE - Sua visita faz parte de uma estratégia política para pressionar o governo brasileiro a revisar a Lei da Anistia?



Garzón - A mim interessa esclarecer essa situação para que não haja manipulação. No mês de maio, fui a Buenos Aires apresentar meu último livro, El Alma de los Verdugos. Meu amigo Eduardo Duhalde, secretário de Defesa dos Direitos Humanos da Argentina, tinha uma reunião do Mercosul no mesmo hotel onde eu estava hospedado. Ali, conheci Paulo Vanucchi (ministro brasileiro da Secretaria Especial de Direitos Humanos). Duhalde me pediu que eu fizesse uma palestra sobre direitos humanos. Depois da palestra, Vanucchi me convidou a vir ao Brasil falar sobre o mesmo assunto. Respondi que não poderia confirmar uma data. No mês de agosto, finalmente, decidi passar férias na Colômbia e telefonei para Vanucchi dizendo que poderia estar no Brasil entre os dias 18 e 19 de agosto.






RE - O senhor defende a penalidade para todos os crimes cometidos nas ditaduras? O que acha de comissões de reconciliação como as da África do Sul?



Garzón - Não defendo apenas medidas penais. Para haver uma comissão de reconciliação, é necessário haver antes uma aceitação por parte dos acusados de sua participação dos fatos, a confissão e o ressarcimento às vítimas. Esses foram parâmetros usados na África do Sul. Temos também o caso colombiano que, por meio da Comissão de Justiça e Paz, está aplicando uma fórmula mista de reparação e justiça penal.






RE - No Brasil, há setores que criticam reparações indenizatórias a vítimas da ditadura que teriam recebido uma quantia exagerada. O senhor acredita em regulamentação para esses casos?



Garzón - Como se pode regulamentar a quantia que alguém deve receber por ter perdido um ente na ditadura? Como medir o valor da vida? Não é apenas no Brasil que existe essa discussão. Para mim, o mais importante é o ressarcimento moral às vítimas por um sistema de justiça.







RE - O Supremo Tribunal Federal do Brasil tem atuado em defesa dos direitos individuais. Recentemente, regulou o uso de algemas em detidos. O senhor acompanhou a polêmica?



Garzón - Ouvi algo. Na Espanha, essa discussão não tem sentido, porque algemar ou não uma pessoa é uma decisão policial. Os juízes não interferem. Quando recebi os presos acusados por terrorismo, eles chegaram algemados até minha porta. A partir daí, decidi que fossem tiradas as algemas porque não costumo tomar depoimentos de pessoas algemadas. Foi uma decisão minha.






RE - O senhor libertou Maria Remedios Garcia Albert, acusada de ser representante das Farc (as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) na Espanha. Por que fez isso, uma vez que o senhor sempre chamou as Farc de grupo terrorista?



Garzón - A libertação dessa mulher ocorreu dentro de processo judicial espanhol. Na Espanha, se o Ministério Público solicita a liberdade de um detento, um juiz não pode discordar dessa opinião. Se o MP disser que o preso pode sair mediante fiança, não há lei ou juiz que se sobreponha a essa decisão. Quanto às Farc, sempre as considerei como organização terrorista, ligada ao narcotráfico, que comete crimes de lesa-humanidade, que causa dor permanente à sociedade colombiana. Neste momento, ela está sensivelmente mais fraca. A força do Estado de direito está prevalecendo.






"Na Espanha, algemar ou não uma pessoa detida é uma decisão
policial. Os juízes não interferem".





RE - Como o senhor viu a ingerência do presidente Hugo Chávez na tentativa de libertar reféns das Farc?



Garzón - Esse caso já está resolvido. Os governos colombiano e venezuelano já fizeram as pazes. Quando se trata de organizações terroristas como as Farc, a única forma de lidar com elas é exigir que se desarmem e dar todo o apoio às autoridades colombianas, estando ou não de acordo com a linha política do presidente Álvaro Uribe. Até porque essa não é uma questão presidencial, mas do povo colombiano, vítima da situação.






RE - Qual é o legado do processo contra o ditador Augusto Pinochet pelo qual o senhor foi responsável?



Garzón - O legado é que a impunidade tem seus dias contados. Ficou claro que, com o esforço e a cooperação de todos, não somente de um país, se poderiam levar aos tribunais os criminosos que cometeram crimes contra a humanidade.






RE - O senhor já recebeu ameaças de morte ou em algum momento sentiu medo por causa de seu trabalho?



Garzón - Na minha profissão, o medo é um luxo que não podemos nos permitir. Nunca ocorreu uma situação em que eu temesse algo. Mas, se isso tivesse acontecido, eu teria de prosseguir meu caminho. Meu compromisso é com os cidadãos do Estado de direito.







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