Minha Vida Sem Celular
Sílvio Lancellotti - Revista Época nº 521 de 12/05/2008
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG83634-6010-521,00-MINHA+VIDA+SEM+CELULAR.html
Meses atrás, outubro de 2007, me procurou um headhunter, caçador de executivos, representante de uma portentosa multinacional de livros de arte e de gastronomia, com sede na Alemanha. Anunciou que a empresa pretendia alguém, com o meu perfil, para instalar uma sucursal cá na América Latina.
O "headhunter" já me conhecia o suficiente, dos meus longos anos de mídia no Brasil - mas, ainda assim, a fim de me apresentar melhor ao enviado tedesco que participaria, com ele, da inevitável entrevista, solicitou a remessa do meu currículo, por e-mail.
A entrevista transcorria simpaticamente, eu capaz de um inglês menos tortuoso do que o enviado. Então, subitamente, o cidadão, que lia e relia o tal currículo, me arremessou uma pergunta lancinante:
"Cadê, na sua ficha básica, o número do seu celular?". Respondi como convinha, seco, direto, sem piedade:
"Eu não uso celular".
Daí, diante da perplexidade do headhunter e do enviado, arrematei:
"Olhe os meus pulsos: também não uso relógio. Um ex-velejador, eu percebo os horários pela posição do Sol, da Lua e das estrelas, inclusive debaixo das nuvens. E eu não tenho carta de motorista, não guio automóveis. No trânsito congestionado da megalometrópole, num táxi, prefiro desfrutar um jornal ou um romance. E há mais: nesta calorama, não visto meias".
Acho que o tedesco me desprezou por causa das meias. De jovial, o clima se transformou em hostil. Perdi a chance de um salário fenomenal. Isso, de qualquer modo, não importa aqui. E eu volto à questão do celular.
Tive um, de sete dígitos, 20 anos atrás, quando a ex-Telesp decidiu testar a eficácia do jovem sistema com um grupo de jornalistas e nos distribuiu os primeiros exemplares de telefones ambulantes do país. Assevero que não aproveitei a novidade. Estava, invariavelmente, em algum lugar fixo, no meu escritório, numa redação, numa emissora de TV, ao alcance de um aparelho normal - e pululavam as ligações desnecessárias, especialmente de gente da família, que conhecia todos os meus paradeiros. Vantagem eventual, apenas, quando os meus filhos adolescentes saíam, à noite, e eu podia monitorá-los a distância. Podia, claro, quando o sistema funcionava ou quando a bateria do equipamento não descarregava em instantes. Certa ocasião, um dos filhos, simplesmente, se apossou do celular, e eu não fiz a menor questão de recuperá-lo. Até hoje ele mantém a linha, com um nove a mais no seu prefixo.
Na Copa de 94, nos Estados Unidos, a Folha de S.Paulo, cujas cores eu defendia, profissionalmente, me compeliu a portar um apetrecho de uns 10 quilos de peso, brutalmente dependurável a tiracolo. No caso, não me queixo, aquele celular troglodita me serviu. Embora eu me obrigasse a clicar exatos 38 dígitos para fazê-lo pegar no tranco, conseguia me conectar inclusive em meio a uma viagem, de uma rodovia, de um campo de treinamento, de um estádio. E foi graças ao troglodita, por exemplo, que um informante meu, na Fifa, a entidade que organiza o futebol no planeta, me encontrou, numa estradinha de Nova Jersey, e me passou, 24 horas antes da divulgação oficial, o resultado do exame antidoping de um certo Diego Armando Maradona. Imediatamente, eu transmiti a notícia à Folha, o que me garantiu um furo internacional.
O episódio, admito, me reanimou. De retorno ao Brasil, ousadamente eu comprei um celular levinho, compacto. No entanto, logo a despesa com as contas me aterrorizou. Eu permanecia em algum lugar fixo, ao alcance de um aparelho normal, e continuaram a proliferar as ligações desnecessárias.
Aposentei o bicho, que me olha como um monstro, e como um troféu, de uma estante ao lado do meu micro de plantão. O restante da família, porém, não dispensa o equipamento. Uma tortura. Minha mulher e os três pimpolhos que, ainda hoje, moram comigo não sabem viver sem um ambulante. Tanto que, às vezes, quando vamos a um restaurante, a nossa partida se atrasa vários minutos, até descobrirem onde esqueceram os seus parceiros. E saiba você que me escolta neste texto, talvez com um ar de supremacia ou de menoscabo, nem sempre o celular que portam escuta as minhas súplicas. Responde com um aviso de "fora-da-área", de "caixa-repleta", de "ah-fui-roubado".
É, também há isso. Entre distrações, perdas em baladas, furtos diversos nos cruzamentos da Paulicéia, eu já contabilizo, negativamente, meia dúzia de dispositivos desaparecidos. Quanto à despesa com as contas, que atingiu os pináculos da estratosfera, dei um jeito ao bloquear, no meu ridículo aparelho normal de casa, as ligações para celular. Evidentemente, os valores que indico, a seguir, são fictícios - mas as despesas desabaram de 1.000 para 300.
Aposentei o bicho, que me olha como um monstro, e como um troféu,
de uma estante ao lado do meu micro.
Renitente, obstinado, eu me recuso a sucumbir a uma modernidade que me incomoda. Deixo anotado, em casa, o número do celular do meu condutor de táxi - que, aliás, ostenta dois exemplares da mortificação. Vou à TV, onde alguém me fisga, desde que eu não esteja no ar, ao vivo - e, nessa situação, não poderia, mesmo, atender as ligações para um ambulante. Da TV, retorno à minha casa, na qual me pescam pelo meu ramal interno. Sou feliz, assim.
Respeito a minha liberdade, no celular, no relógio - e nas meias.
Por que fotografar os meus netos com celular se eu possuo uma câmera de qualidade infinitamente superior? Por que baixar o hino do meu clube se eu torço pelo patético Palermo da ilha da Sicília dos meus ancestrais? E por que eu receber mensagens de aviso de que não paguei as minhas contas, se não produzi as despesas relacionadas? Tortura. Ironia. Um enorme cansaço...
Todavia, eis uma certeza que, neste cenário, agora, curiosamente, me aflige. Quando eu contei a minha mulher que ÉPOCA me encomendara este artigo, dela eu recebi uma sonora sapecada, típica das ótimas esposas:
"Tá bom. Mas você precisa ter um celular!".
Acho que obedecerei. Só que sem dar o número a mais ninguém.
Não quero que um cobrador me ligue no meio de uma transmissão do calcio, no meio de uma pizza ou numa jam session do Nelsinho Ayres...
Por que fotografar os meus netos com celular se eu possuo uma câmera de qualidade infinitamente superior? Por que baixar o hino do meu clube se eu torço pelo patético Palermo da ilha da Sicília dos meus ancestrais? E por que eu receber mensagens de aviso de que não paguei as minhas contas, se não produzi as despesas relacionadas?". Telefone para mim é somente para receber ligações e de vez em quando fazer algumas, quando não tiver mesmo outra alternativa. Um abraço. Drauzio Milagres.
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