terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Liberdade de expressão nunca significou, nem nunca significará, dizer qualquer coisa de qualquer forma


"Liberdade de expressão nunca significou, nem nunca significará, dizer qualquer coisa de qualquer forma".

"(...) todo racista hoje em dia clama pela liberdade de expressão, pelo direito de 'expressar sua opinião'. Mas racismo e preconceito não são opiniões, são crimes".


Palavras e Metralhadoras
Carta Capital - Vladimir Safatle - 23/01/2015
http://www.cartacapital.com.br/revista/833/palavras-e-metralhadoras-9110.html





Desde o atentado ao periódico Charlie Hebdo, sobe à cena mais uma vez o debate sobre a liberdade de expressão e seus possíveis limites. Se os lados envolvidos não tivessem, muitas vezes, um comportamento tão canino e pouco generoso, poderíamos ter enfim uma discussão necessária sobre crítica, palavra e violência em nossas sociedades. Pois há de se admitir que existem bons argumentos dos dois lados, sejam daqueles que defendem de forma absoluta as ações do jornal, sejam daqueles que as criticam. Mas, enquanto enxergarmos, em um lado, apenas racistas que não perdem uma oportunidade para alimentar a islamofobia e o ódio aos imigrantes e, em outro, apenas esquerdistas dispostos às piores alianças para continuar sua cruzada contra os valores liberais, continuaremos a ignorar o tipo de discussão que deveríamos ter após o atentado, isto se quisermos estancar a rede de causas que alimentam a violência do extremismo religioso.


Diria inicialmente que o melhor argumento apresentado pelos que defendem as charges de Charlie Hebdo e a violência nelas contida é: não devemos regredir no tempo e criar uma lei contra a blasfêmia. A percepção é correta, pois religião não é apenas uma questão de crença, mas de instituições que têm peso político decisivo em nossas sociedades. Católicos, evangélicos, muçulmanos, judeus, todos procuram interferir, de acordo com suas forças sociais, no ordenamento jurídico de nossas sociedades a partir de estratégias variadas. Impedir que tais instituições sejam criticadas por meio das armas da ironia seria de fato um equívoco brutal. Afirmar que não se deve ironizar o que grupos sociais relevantes consideram como "sagrado" seria bloquear uma dimensão essencial do pensamento crítico. Seria difícil entender por que não censurar do mesmo modo os livros de Nietzsche nos quais ele insiste na "morte de Deus" ou A vida de Brian, do Monty Python.

Há, porém, uma outra dimensão do problema com as charges do Charlie Hebdo que normalmente não é levada em conta por seus defensores. Liberdade de expressão nunca significou, nem nunca significará, dizer qualquer coisa de qualquer forma. Se alguém ironizar os negros como intelectualmente inferiores, tripudiar das mulheres com enunciados machistas que expressam a história de sua sujeição, fazer chacota dos judeus baseado nos velhos preconceitos que alimentam milenarmente o antissemitismo, espera-se que o Estado impeça a circulação de tal violência. Certos enunciados trazem uma história amarga de violência, humilhação social e preconceito contra grupos mais vulneráveis. Não por outra razão, todo racista hoje em dia clama pela liberdade de expressão, pelo direito de "expressar sua opinião". Mas racismo e preconceito não são opiniões, são crimes.

Há, portanto, o direito de perguntar se várias das charges publicadas pelo Charlie Hebdo não eram simplesmente preconceituosas e profundamente violentas em relação à parcela da população francesa (os magrebinos e descendentes de árabes, majoritariamente muçulmanos), atualmente a mais miserável, discriminada e sem representação social. Parcela que ainda carrega o sentimento da humilhação colonial, com seu sistema perverso de redução da cultura do colonizado (religião inclusa) ao arcaísmo ou ao exotismo. Não é possível ignorar: quem fala em muçulmanos fala da população árabe das periferias. Não é possível esquecer também que quando um francês ironiza um árabe muçulmano continua a ser um colonizador a ironizar um colonizado.


Poderia lembrar de várias charges que deixaram de ser apenas expressão de ironia blasfema para ser simplesmente violência social. Em sua edição número 1.099 lê-se na capa do Hebdo a frase "Massacre no Egito: O Alcorão é uma merda, ele não para as balas" e o desenho de um egípcio a sangrar com o livro na frente crivado de balas. Naquela semana, 500 simpatizantes da Irmandade Muçulmana, que não tem nada a ver com os jihadistas internacionais e salafistas e há muito abandonou o terrorismo, foram massacrados pelo Exército. Não é necessário ser um ph.D. em semiologia para perceber a mensagem: não há solidariedade possível com muçulmanos envolvidos na política. Nega-se ali até o fato de não ser necessário simpatizar com os muçulmanos para se indignar com massacres militares covardes. Se 500 militantes da TFP fossem massacrados pelo Exército Brasileiro, não seria possível transformar o fato em piada. Por que nada disso chocou o governo francês? Respondê-la seria uma maneira de começar a pensar no que podemos fazer para que atentados dementes como este não se repitam.




segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Quem blasfema o nome do Senhor deve ser morto?



"(...) não é o Alcorão, mas a Bíblia, no Levítico (24:16), o único livro sagrado a sancionar a blasfêmia com pena de morte: 'Quem blasfema o nome do Senhor deve ser morto'".

"O policial de origem árabe e religião islâmica Ahmed Merabet enfrentou até a morte, na calçada defronte à sede do semanário, os dois irmãos Kouachi. Seus familiares, (...), ressaltaram: 'Ahmed era de fé islâmica e os seus assassinos uns falsos islamitas, pois o Islã é uma religião de paz'".


Além do Charlie Hebdo
Carta Capital - Wálter Maierovitch - 18/01/2015
http://www.cartacapital.com.br/revista/833/alem-do-charlie-hebdo-5978.html







A tragédia no semanário Charlie Hebdo acirrou na Europa o conflito político-ideológico entre a direita radical difusora da islamofobia e a esquerda, com a sua bandeira de integração centrada na formação de uma igualitária sociedade multiétnica.


À frente dessa direita populista na França está Marine Le Pen, da Frente Nacional, na Itália Matteo Salvini, da Liga Norte. Ambos com posições xenófobas e favoráveis à revogação do Tratado de Schegen, a cidade luxemburguesa onde foi celebrado, em 1985 (seria aperfeiçoado em 1995), ao estabelecer a livre circulação de cidadãos pela União Europeia.

Essa dupla não distingue a presença majoritária de islamitas pacíficos e minorias reunidas em associações terroristas salafistas financiadas, muitas vezes, como foi o caso de Osama bin Laden, por uma elite endinheirada, encastelada nas petromonarquias da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes e do Catar.

Melhor: trata-se de associações terroristas com atuação em rede planetária e adesão a um integralismo de matriz político-religiosa. Essas organizações não aceitam o pluralismo de ideias e de programas, a laicidade do Estado, a liberdade de opinião e de imprensa, a democracia. Abraçam o totalitarismo religioso. Seus integrantes estão sempre prontos a matar aos gritos de Allahu akbar (Alá é grande) ou de invocar, para justificar os bárbaros crimes, o nome do profeta Maomé, em equivocada interpretação do Alcorão. A propósito das charges do semanário, não é o Alcorão, mas a Bíblia, no Levítico (24:16), o único livro sagrado a sancionar a blasfêmia com pena de morte: "Quem blasfema o nome do Senhor deve ser morto".

Para Marine Le Pen, as mortes no Charlie Hebdo revelaram "não ser a Europa capaz de defender seus cidadãos contra o terrorismo". Le Pen não atentou a dois fatos significativos que envolvem, no caso da integração étnica, islamitas praticantes. O policial de origem árabe e religião islâmica Ahmed Merabet enfrentou até a morte, na calçada defronte à sede do semanário, os dois irmãos Kouachi. Seus familiares, em entrevista coletiva que Le Pen prefere ignorar, ressaltaram: "Ahmed era de fé islâmica e os seus assassinos uns falsos islamitas, pois o Islã é uma religião de paz".

Na tragédia do dia seguinte, o malinês Lassana Bathily, funcionário do armazém de produtos kosher onde quatro reféns foram assassinados, salvou mais de uma dezena de hebreus. Bathily escondeu em uma câmara frigorífica, depois de desligar o sistema refrigerador, diversos judeus em compras no mercado. Salvou-os da ira e das balas do fanático Amedy Coulibaly. Na véspera, Coulibaly havia matado uma policial estagiária desarmada em um parque da comuna de Montrouge.

Na seara policial e de inteligência, muitos pontos precisam ser esclarecidos. A Al-Qaeda da Península Arábica, sediada no Iêmen, reivindicou, após autorização de Ayman al-Zawahiri, sucessor de Bin Laden e chefe da Al-Qaeda central, a autoria do atentado no Charlie Hebdo, conforme um vídeo de 11 minutos.

Pelos sinais, tudo pode ter nascido de iniciativa escoteira de uma célula doméstica e autônoma fundada em 2005 pelos irmãos Kouachi, com adesão de Coulibaly e predicações de Djamel Beghal. Essa célula chegou, no parque francês de Buttes Charmont, a atuar na arregimentação de jihadistas para o Iraque e, posteriormente, à Síria.

Chérif Kouachi e Coulibaly foram condenados, com penas de 3 e 5 anos, por tentativa de tirar da penitenciária o terrorista Ali Belkacem, autor de um atentado no metrô em 1995. Chérif ficou sete meses preso e recebeu livramento condicional, enquanto Coulibaly deixou a cadeia em julho de 2014. Até então, a célula atuava com autonomia, por sua conta e risco. A Al-Qaeda central, desde Bin Laden, pregava, via ciberterror, a ordem do "faça você mesmo a sua parte sem precisar consultar, salvo em questões religiosas".

Interessa à Al-Qaeda colocar no currículo um segundo 11 de Setembro, desta vez na França. Ainda mais por estar em conflito com o Estado Islâmico, que logrou ocupar um território, enquanto seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, proclamou-se califa Ibrahim, o que deve ter levado Bin Laden a se remexer de inveja no fundo do mar. O sonho não realizado de Bin Laden era ter um califado. Registre-se: os irmãos Kouachi avisaram pertencer à Al-Qaeda. Não esclareceram, no entanto, se estavam sob ordens alqaedistas.

Pergunta: a versão oficial a ser apresentada vai ou não coincidir com a verdade real?